Lembrava-se como se fosse ontem das notícias nos jornais da tevê. Os malditos cientistas, bichos curiosos e atrevidos, resolveram futricar no passado. Os caixões estavam lá, quietos, seguros, contudo os homens da ciência tinham que estudar os corpos das vítimas do acidente do Césio-137. Foi um alvoroço. As pessoas queriam esquecer aquela tragédia, não revirar os corpos a procura de sabe-se lá o que pudesse ser encontrado neles. O caso, rapidamente, virara notícia na capital, no Goiás inteiro e, então, no país: o passado iria ser revirado em nome do conhecimento.

   O que os pesquisadores, tão famintos por conhecimento, não esperavam, era que a natureza estivesse aguardando o momento certo para fazer a prova definitiva aos homens. Não havia só corpos dentro das caixas de chumbo, mas também seres microscópicos. As desgraçadas das bactérias estavam lá; e vivas. Estavam adormecidas, em forma de esporos — Pietro se lembrava bem dessa expressão nos jornais. Seres minúsculos, capazes de não só resistir ao efeito do césio, como também de acordar novamente para o mundo e causar uma distribuição que ele jamais imaginou um dia ver.

   As bactérias começaram a se desenvolver, infectando as pessoas, de uma por uma. Os sintomas começaram a surgir em uma velocidade surpreendente. Vômito, diarreia, dores no corpo… Depois tremedeira, insônia, delírios, paranóia… E, por fim, perda da consciência de viver em sociedade, aumento da agressividade, sede de sangue… De um por um, indivíduo a indivíduo, a praga foi se alastrando. Logo, novas informações sobre os infectados foram colhidas. Não gostavam da luz natural, escondiam-se durante o dia e saíam enraivecidos a noite. A bactéria carregava consigo uma marca única: a fluorescência; tudo que estava contaminado se tingia de azul florescente durante a noite. Os infectados não eram exceção, quanto mais aqueles seres se multiplicavam no organismo, mais era perceptível no escuro. Sangue, saliva, lágrimas… Tudo era azul ao cair da noite.

   Por fim, em um último estágio, a radiação decompunha a carne, o corpo apodrecia, se definhava, e quando os nervos perdiam a sua função, a morte chegava para acabar com os sofrimento das vítimas, trazendo sossego a corpos já sem alma. Todo esse processo levava cerca de dois meses, Pietro sabia por experiência própria.

   Não demorou muito para que toda Goiânia entrasse em decadência. Menos tempo ainda para que o trem se tornasse um problema nacional; depois mundial. A doença não tinha cura, nem escapatória, uma hora ou outra ela o pegaria, ele tinha ciência dos fatos. Entretanto​, sua fé permanecia acesa e ele não desistiria de viver enquanto tivesse forças para isso. Seguiria com a viagem, calmo e sempre, com a proteção de…

   Sua linha de raciocínio foi perdida quando um odor pungente invadiu suas narinas. O cheiro inebriante tomou o ar a sua volta, abraçando a si e a seus animais. Ele ficou de pé dentro do carro de boi, segurando o chapéu para que o vento não o fizesse partir. Analisou todo o território, usando da minúcia, até que encontrou o que procurava. Mais a frente, assim que a estrada fazia uma curva em meio a uma plantação de eucalipto que tomava os dois lados da via, dois veículos amassados; tinham batido de frente, colidido grotescamente. O amontoado de lata estava no centro da rodovia, bloqueando quase toda a passagem.

   Pietro guiou seus companheiros para que passassem pelo acostamento. Ao passo que seu lento veículo ia cruzando o lado dos automóveis acidentados, ele ia observando o estrago. O cheiro, logicamente, era de carne pobre, as moscas ao redor da lataria evidenciavam aquilo. Haviam duas pessoas mortas em um carro esportivo e outra numa pampa já antiga, estilo ano 2070 ou mais. O aroma repulsivo era de putrefação, contudo não era de corpos contaminados; o cheiro que as bactérias deixavam era mais ácido, grudava mais no nariz. Tinham morrido única e estritamente pelo choque da colisão.

   — Tá vendo, Diamante — ele disse, chamando a atenção de um de seus bois. — Eu falo procê que num precisa de pressa. Isso que dá quando se quer correr demais — puxou a orelha do amigo.

   Prosseguiu viagem, sem se deixar prender pelas cenas escabrosas. Não eram​ as primeiras pessoas que via naquela conjuntura e, pelo extenso caminho que tinha pela frente, tinha absoluta certeza que não seriam as últimas.

   Caminhou mais cerca de meia hora, até encontrar um córrego que passava perpendicularmente sob o asfalto. Os bois estavam cansados, almejam uma sombra fresca, água cristalina e um palmo de capim que pudessem abocanhar, já ele, pedia apenas a sombra de uma árvore onde colocaria seu fogãozinho de duas bocas e cozinharia um bom rango; e aquele córrego tinha tudo isso. Parou fora da estrada, retirou as rédeas de seus quatro animais e os acompanhou até às margens, onde os quatro se colocaram a saciar a sede.

   Olhou para o céu; pela posição do sol, que reinava no centro de um fundo azul, passava do meio-dia. Retirou o celular do bolso e confirmou com a tecnologia os dons temporais que havia aprendido com seu pai: era quase uma hora da tarde. O calor era intenso, mesmo por debaixo das árvores, o que o levou a cogitar um banho de rio, há muito não mergulhava a cabeça em águas correntes. Estava começando a tirar as botinas, quando um barulho se fez ouvir. Um barulho próximo, dentro do carro de boi.

   Pietro colocou-se em estado de alerta, caminhando sorrateiramente até seu veículo de pouca tecnologia, mas de grande valor.

   — Que disgrama! — praguejou ele, quase em sussurros, por ter deixado seu revólver dentro de sua mochila.

   Haviam notícias de infectados que conseguiam perambular durante o dia, fazendo novas vítimas mesmo depois do raiar do sol. Contudo, até o momento ele considerava que tais notícias não passavam de boatos, um entre tantos outros que a mente humana assustada era capaz de inventar; não contava que iria encontrar um logo ali, em uma parte da estrada livre dos microorganismos.

   De longe, conseguiu distinguir uma silhueta humana sobre seu carro de boi, vasculhava suas coisas de forma apressada. O ser estava tão focado no que procurava, que sequer se importava em saber se estava sendo vigiado ou não. E estava. Pietro assistia a tudo, meio receoso em chegar em perto, contudo obrigava-se a dar passos lentos em direção ao intruso. Pelo comportamento inconsequente, pensou o velho, só poderia ser um infectado já em estágios avançados de contaminação.

   Apanhou no chão o primeiro pedaço de pau que vira, avançou um pouco mais rápido. Estava quase do lado do ser. Ergueu o tronco, disposto a acertar direto na cabeça, sem dar chances de luta.  Entretanto, quando ia golpear, o ser rolou para o lado, caindo do carro de forma estabanada e soltando um grito de susto. Um grito que um infectado não produziria. Pietro viu o garoto cair de bunda no chão cascalhento forrado por capim, levantando as mãos no instante em que percebera que o que lhe atacava era o dono do veículo. Os olhos assustados, a roupa suja, a feição pálida.

   — Por favor — implorou, os olhos já brilhando em desespero. —, não me mate.

Azul Que Cobre O AsfaltoWhere stories live. Discover now