Primeiro

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   A vida no campo nunca fora fácil. Sempre, durante toda a existência humana, viver na fazenda fora um sacrifício. Acordar cedo, cuidar dos animais, tirar o leite, trabalhar para o sustento diário…  Eram tarefas gratificantes, que tinham a capacidade de acalmar o espírito; contudo, as mãos não deixavam de calejar por isso. A vida urbana, não. Era totalmente diferente; mais fácil, mais prática. Não era atoa que as cidades tinham crescido tanto nas últimas décadas do século XXI.

   Contudo, diferente do que a maioria da população pensava, Pietro insistia em manter suas raízes vivas. Tinha nascido e crescido na pequena fazenda de seus pais e lá permanecera durante toda sua vida, casando-se e criando seus dois filhos até que eles não precisassem mais de sua criação. Depois, passou a viver com sua velha esposa, sozinhos, sempre unidos, até que a vida fizera questão de separá-los.

   A vida no campo, por mais difícil que fosse, era a vida que ele conhecia; e não sabia pensar uma outra vida em que teria sido tão feliz. Conseguia enxergar muito bem o prazer acima dos desprazeres, o sossego acima dos desastres, a paz acima da destruição… Sim, fora muito feliz na roça, por mais que as coisas tivessem mudado muito nos últimos doze meses.

   Ouviu um de seus bois bufar, começando a se cansar com o trajeto.

   — Acalme-se, Barão… — Pietro disse. Olhou para a estrada a frente, estendendo-se infinitamente no horizonte. — Tamo só no começo, rapaz.

   Não podia julgar o animal pelo desânimo em prosseguir, o velho sabia muito bem que ele não tinha culpa; tornara-se complicado alimentar dignamente qualquer ser vivo que fosse nos últimos meses. O capim do pasto sofria com a falta de nutrientes e com a ausência de um cuidado mais árduo do velho, o que levava a desnutrição dos animais da fazenda, e os bois não eram exceção. Fosse em outros tempos, Pietro sabia, o boi só começaria a se cansar após passar a próxima cidade. Mas aqueles tempos tinham ficado para trás.

   Tinha acabado de sair da estrada de terra batida que levava para suas posses. Agora, andava nos primeiros quilômetros do asfalto quente da GO-070; apenas ele, seus quatro animais e a companhia inseparável de seu Deus. Caminhavam devagar, como  em todas as outras viagens dos anos anteriores — nem tudo havia mudado. Em seu carro de boi, levava o básico e necessário: comida, apenas para si, pois a dos animais crescia solta rodovia afora, água o suficiente para que matasse a sede até encontrar a próxima nascente que cortava a estrada, seus materiais de higiene pessoal, alguns pares de roupa, seu berrante, sua imagem de Nossa Senhora e objetos para autodefesa, caso surgisse em seu caminho algum mal que a ajuda divina não fosse capaz de livrá-lo, o que provavelmente aconteceria em breve.

   Olhou em volta, confirmando para a sua mente velhaca que o perímetro que avistava era seguro. Ao seu redor, nenhuma casa ou nenhuma construção humana, senão a rodovia, podia ser enxergada. O máximo de preocupante que estava próximo era uma pequena reserva de Cerrado ao lado da estrada, porém, a reserva era composta por escassas árvores e arbustos, com predominância dos capins que cresciam na região, e não dava muitas oportunidades de esconderijo para alguma ameaça. Averiguou, também, o asfalto. Durante o dia era difícil de ver as manchas, mas tudo indicava que aquele pedaço do caminho estava limpo das bactérias. Poderia aproveitar a viagem, como nos velhos tempos, ao menos nos próximos minutos.

   Aquela praga estava em todos os lugares, era até admirável que ainda houvessem áreas limpas. Tudo que aquelas bestas tocavam, ficava infectado; Pietro aprendera com o tempo que era inútil tentar limpar as coisas. O melhor a se fazer era evitar as áreas contaminadas e impedir que novas áreas se sujassem. A melhor forma de defesa era se manter na espreita, sem alardear, e para isso era preciso calma e silêncio. Tivera que se adaptar; o carro de boi não tocava mais seu canto tão belo, o roncar das rodas de madeira enquanto girava em torno de seu eixo não se fazia mais ouvir, as engrenagens do veículo sertanejo tinham sido bem polidas e lubrificadas para que o som desaparecesse. O velho também arranjara protetores para seus bois; uma espécie de bota cobria os cascos dos animais, evitando que os pobres tivessem contato com as bactérias. O homem estava esperto, o ano que passara lidando com a nova realidade lhe dera a esperteza necessária.

Azul Que Cobre O AsfaltoWhere stories live. Discover now