A Carta

747 111 68
                                    

Eu

(Por volta do ano de 2013)

Hoje minha mãe e minha tia falaram de homossexualidade, e como sabemos, elas são bem preconceituosas (assim como todos vocês), os comentários não poderiam ser de menos, né? Tipo: “Isso é doença” “Coisa nojenta” “Ela tá casada com o diabo”... Por aí vai, esse último foi direcionado a Isabela, sobrinha de nossa conhecida que se assumiu lésbica tempos atrás, ela e outra prima, isso aí, incesto! E cá entre nós, corajosas hein? Se assumir perante uma família religiosa onde a tia é missionaria não é fácil, enfim.

Já li textos que falam que os pais sempre sabem, eu acredito que sim, vocês sempre souberam né? Só fingiram não acreditar, talvez seja mais cabível pensar que é só uma fase, e que vai passar, “todo jovem passa por isso, querer experimentar coisas novas, isso se chama rebeldia, para mostrar aos pais que podem fazer do corpo o que bem entender, só que não é assim, estão condenados ao inferno!”, nas palavras da minha tia! Mas porque estou contando isso pra vocês? Já vão entender...

Sabe, eu decidi não me revelar pra vocês (família), e acho que isso significa que vou me privar, me anular, vou viver em cativeiro, cativeiro de mim mesmo, preso as minhas escolhas... Bem, tanto faz, parece que eu desisti, né? E é exatamente isso que aconteceu, a vontade de viver a cada dia se vai e eu fico cada vez mais vazio, mas me resta uma centelha de vontade que queima no meu peito, e eu irei usá-la: A de ser livre! Não, não estou me contradizendo, liberdade pode ter vários significados, para cada pessoa, um significado diferente...

Como isso pode acontecer? Como posso ser livre, livre dos meus medos, das minhas escolhas? (ainda que não tenha escolhido nada disso), simples! Só sei que será rápido, certeiro e eficaz. Talvez indolor, isso nunca ninguém vai saber, e eu não vou ter como lhes contar, afinal, só meu corpo irá repousar no chão úmido, coberto de folhas secas, do meu quintal, (talvez meu corpo revele alguma coisa).

Me encontrarão debaixo da minha árvore, essa que é seca, sem graça e sem vida (assim como eu).

Então vamos lá, do início, correto? (Suspiro) Intitulo de “EU”...

Já não adianta mais eu pensar e repensar, não adianta porque é assim que eu sou! Desde que eu me entendi por gente. O que ocorreu cedo, por eu ser uma criança a frente das outras, e eu não tenho culpa de ser assim, na verdade ninguém tem. Não foi por ser criado por minha mãe, (pai ausente) e um padrasto relapso a dar carinho e afeto que um pai deveria dar, achando que apenas casa e comida resolveriam grande parte do problema; não foi por isso que me tornei o que sou hoje... Mas não é sobre isso que quero falar, só não se sintam culpados.

Acho que sempre gostei de garotos, talvez quem esteja lendo fique surpreso, talvez não, afinal era muito fácil ler meus trejeitos, do que eu gosto, mas enfim, essa carta é endereçada a família, por isso espero todos reunidos para ler, e por favor, não parem na parte em que revelo ser homossexual, porque vamos combinar, a essa altura, grandes coisa, né? Devem estar de luto agora, ou não, não tenho como precisar mais nada.

Mas voltando a questão principal, sim, sempre fui gay, e vivi todo esse tempo escondido com medo de ferir a imagem de família perfeita (que, me desculpem, está longe de ser isso). Quando estiverem lendo esta carta eu já estarei morto, sim, eu tirei minha própria vida.

Porque já não suportava mais, não suportava não caber nos lugares, ser sempre o diferente, o esquisito, bichinha e veadinho da família, o afeminado (isso soa tão engraçado agora), sabe gente, tudo que eu queria era o apoio de vocês, nunca nenhum de vocês veio conversar sobre o que eu sentia, como me sentia... Alguém sabe o que é crescer isolado e afastado de todos que gosta por não se sentir aceito? Creio que não, mas não estou me lamentando, desculpem se foi isso que pareceu. E agora me deixe parar de pedir desculpas porque definitivamente eu não tenho culpa de nada.

Vocês me abominavam mesmo sem ter a absoluta certeza que sou gay (ou era né? (risos)). O fato é, estou deixando vocês livres, e automaticamente me dando a liberdade, para onde minha alma irá é um mistério, nem vocês sabem, mas também não se preocupem com isso, pagarei o que for me cobrado, porém acho que o verdadeiro inferno está na terra, nas pessoas, na maldade e hipocrisia que tem dentro de cada um.  

Agora vamos às despedidas individuais, (me sinto importante. Me deixem ser enraçado uma última vez.)

Mãe: Se livre das amarras, você não precisa de um homem que te diga o que fazer e até para onde olhar, sei que você é forte, já me demonstrou tantas vezes que já perdi a conta. Eu não te culpo por me falar coisas que me magoaram (mesmo que de forma indireta), só foi a criação que você recebeu, tente ver minha partida como uma nova oportunidade de viver, eu sei que muita coisa que você aguentou foi por mim, pra poder me proteger e tudo mais, saiba que te amo, o mais puro e singelo amor que um filho pode sentir por uma mãe. Obrigado por ser essa mulher forte e determinada. Siga em frente.

Bom, acho que de despedida individual só tinha minha mãe, não pensem que eu os ame menos, amei, da minha forma, não me culpem por ser fechado a demonstrar meus sentimentos.

Tios, tias, primos e primas, sentirei falta de cada um, dos abraços que me davam, de como me protegiam por ser o menor, das palavras de conforto e de que eu conseguiria alcançar meus objetivos, de ser o neto preferido, sobrinho preferido, primo preferido.

Saibam que estou tranquilo, pela primeira vez em vários anos eu estou leve, sentindo o gosto da liberdade, meu medo era o da rejeição, de ser maltratado e de que todo esse amor que vocês sentem por mim virasse ódio (infundado, diga-se de passagem), enfim, só queria pedir para cada um de vocês que fossem menos intolerantes, que tentassem entender, que não foi uma escolha ser assim, ninguém escolhe, simplesmente somos, já que acreditam tanto na bíblia e em seus ensinamentos, sigam um dos mais famosos deles: Amar o próximo como a si mesmo. 

Termino de escrever essas palavras e meu rosto está banhado de lágrimas, elas dessem até meu pescoço que molha a gola da minha camisa, algumas pingam no papel amarelado pelo tempo, que eu guardei há anos e que finalmente fez seu papel. O vento de outono toca meu rosto me fazendo arrepiar, é um vento que precede o inverno. O tempo está fechado, uma gota de orvalho cai de uma folha solitária bem na minha bochecha esquerda, rio comigo mesmo, acho que chegou a hora, dobro a folha ao meio e guardo ela no bolso da minha calça.

Aquela que irá me ajudar a ficar livre descansa no chão, do meu lado esquerdo, tomo-a em minha mão, o aço é pesado e gelado, deve ser esse o aspecto da morte. A encaro, encosto minha cabeça no tronco grosso da minha árvore, as raízes parecem me abraçar, com as duas mãos seguro a arma e a coloco debaixo do meu queixo, quero que minha última visão seja a do céu revolto e escuro. Dedo no gatilho, estou pronto, finalmente puxo o gatilho e tudo se apaga.

---

Esta carta é original e eu a escrevi em um momento difícil da minha vida, quando eu estava confuso e me descobrindo. O trecho em itálico, como devem ter percebido, nunca chegou a acontecer. Eram planos e se eu não fosse covarde o bastante para prosseguir com ele, certamente teria alcançado meus objetivos.

O intuito dela não é, jamais, lhes incentivar a fazer algo que você ao menos terá a chance de se arrepender, pelo contrário, é lhes mostrar que tudo pode ser superado, e vai.

Com ajuda de amigos e de pessoas que me mostraram o valor que eu tinha eu consegui sair desse buraco que se chama depressão. A eles, minha mais eterna gratidão.

Se você, hoje, pensa em fazer algo parecido, saiba que não vale a pena, eu sou a prova de que lutar é muito mais eficaz do que se entregar. Procure ajuda, existem pessoas (profissionais ou não) dispostas a lhe ouvir e lhe aconselhar da melhor maneira possível. Não se entregue a sua dor, por mais que ela seja desoladora.

Lute! Verá que vale a pena tentar outra vez.

— B.V

A CartaWhere stories live. Discover now