Capítulo XXVIII

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   Em todos os lugares em que há gente reunida, uma espécie de cristalização social parece reservar a cada uma dessas pessoas um lugar definido. A estação termal alemã onde os Tcherbatski estavam em vilegiatura não fugia à regra: tal como acontece com uma gota de água exposta ao frio, que toma, invariavelmente, determinada forma cristalina, cada nova pessoa que chegava ao balneário se via desde logo colocada no lugar que lhe pertencia na hierarquia social. Graças ao seu nome, aos aposentos que ocupavam e às amizades que fizeram, Fürst Tcherbatski sammt Gemahlin und Tocher (Nota 14) imediatamente cristalizaram no lugar que de direito lhes pertencia. 

   Este trabalho de cristalização operava-se tanto mais seriamente nesse ano quanto era certo que uma verdadeira Fürstin (Nota 15) alemã honrava as termas com a sua presença. A princesa Tcherbatskaia empenhou-se em apresentar a filha à princesa alemã, e essa cerimônia realizou-se logo no dia seguinte ao da sua chegada. Kitty, com um vestido de Verão muito simples, isto é, muito elegante, que lhe tinham mandado de Paris, fez-lhe uma profunda e graciosa reverência. A princesa alemã disse: "Espero que as rosas não tardem a reaparecer nesse lindo rosto", e imediatamente, para os Tcherbatski, se determinaram os caminhos da vida, dos quais lhes era impossível sair. Os Tcherbatski travaram também relações com uma lady inglesa, com uma condessa alemã, acompanhada do filho, ferido na última guerra, com um sábio sueco e com o senhor Canut e uma sua irmã. Mas o grupo que mais freqüentavam formara-se por si mesmo e era constituído por uma senhora moscovita, Maria Evguenievna Rtichtcheva, a filha desta, de quem Kitty não gostava, pois caíra doente, como ela, por paixão, e um coronel de Moscovo, que Kitty conhecia desde pequena, com o seu uniforme e as suas dragonas, e que ali, com os seus olhinhos, o seu pescoço nu e a sua gravata de cor, se lhe afigurava muito ridículo e aborrecido, e era impossível livrarem-se dele. Estabelecido de maneira definitiva este regime, Kitty começou a aborrecer-se muito, sobretudo quando o príncipe partiu para Carlsbad, deixando-a sozinha com a mãe. Kitty não se interessava pelos conhecidos, pois se dava conta de que nada de novo lhe tinham a proporcionar. Aquilo que mais a entretinha no balneário era observar e fazer conjecturas acerca das pessoas que não conhecia. Ao pensar quem seriam, como seriam e quais as relações que existiriam entre elas, Kitty via-as como criaturas excepcionais e agradáveis e costumava encontrar a confirmação das suas hipóteses. 

   Interessava-a especialmente uma jovem russa, dama de companhia de uma senhora doente, russa também, a quem todos chamavam Madame Stahl. Pertencia à alta sociedade e estava tão doente que não podia andar, só aparecendo para tomar as águas no seu carrinho quando fazia bom tempo. — Mas não tanto em virtude da sua doença, antes por orgulho, que assim o explicava a princesa, aquela senhora não dirigia a palavra a nenhum dos russos presentes nas termas. A jovem russa, além de tratar de Madame Stahl, como Kitty pudera observar, cuidava de todos os doentes graves, que havia muitos nas termas, atendendo-os com a maior simplicidade. Segundo as observações de Kitty, essa jovem não era parenta da enferma a quem acompanhava, nem tão pouco enfermeira contratada. Madame Stahl chamava-lhe Varienka e os demais Mademoiselle Varienka. Kitty gostava muito de observar a maneira como Varienka tratava Madame Stahl e outras pessoas. Experimentava uma simpatia inexplicável por ela e percebia, pela maneira como ela a olhava, que também era correspondida. 

   Não se podia dizer com justiça que Varienka não fosse jovem, antes parecia, contudo, um ser sem juventude: tanto se lhe podia dar dezanove como trinta anos. Nos seus traços, apesar da cor doentia da pele, era mais bonita que feia. Também podia passar por bem feita de corpo, se não fosse a cabeça grande, desproporcionada em relação ao tronco pouco desenvolvido. No entanto, não devia agradar aos homens. Parecia uma flor bonita, ainda com as pétalas, mas já murcha e sem perfume. Demais, faltava-lhe o que sobrava a Kitty: uma chama vital contida e a consciência do seu próprio encanto. 

   Parecia estar sempre ocupada com qualquer trabalho, de cuja utilidade não era lícito duvidar e por isso, aparentemente, era-lhe impossível interessar-se por qualquer outra coisa. Essa maneira de ser, oposta à sua, era precisamente o que mais atraía Kitty. Sentia que em Varienka, na sua maneira de viver, acharia o modelo que procurava agora tão afincada-mente: um interesse na vida, uma existência digna, à margem do trato mundano com os homens, coisa que lhe repugnava e que se lhe apresentava agora numa jovem como vergonhosa exposição de mercadoria à espera de comprador. Quanto mais observava a sua desconhecida amiga, tanto mais Kitty se convencia de que essa rapariga era o ser perfeito que idealizava e mais se empenhava em conhecê-la. 

   Costumavam encontrar-se várias vezes por dia e sempre que isso acontecia os olhos de Kitty diziam: "Você, quem é? Você, quem é? Será, de facto, uma criatura tão encantadora como eu imagino? Mas, por amor de Deus, não pense que vou obrigá-la a ser minha amiga. Apenas a admiro e estimo", acrescentavam os seus olhos. "Também eu lhe quero, acho-a muito simpática e ainda mais lhe quereria se tivesse tempo para isso", respondia o olhar da desconhecida. Com efeito, Kitty encontrava-a sempre ocupada: ora a acompanhar as crianças de uma família russa depois de tomar as águas, ora a levar uma manta a uma doente e a embrulhá-la nela, ora procurando distrair um doente excitado, ora escolhendo e comprando biscoitos para o café de alguém.

   Pouco depois da chegada dos Tcherbatski apareceram nas termas outras duas personagens que atraíram as atenções gerais, despertando hostilidade. Tratava-se de um homem alto, um pouco curvado, que usava um sobretudo velho, curto de mais para a sua altura, de mãos enormes e olhos pretos, ao mesmo tempo ingênuos e terríveis, e uma mulher agradável, marcada de bexigas, que se vestia mal e sem gosto. Ao verificar que eram russos, Kitty principiou a forjar a respeito deles um lindo e enternecedor romance.

   Mas a princesa, que na lista dos veraneantes pôde colher esses ele mentos, disse à filha que se tratava de Nicolau Levine e de Maria Nikolaievna, e contou lhe tudo que de mal sabia acerca desse homem, desvanecendo todas as ilusões de Kitty. Não tanto, é certo, pelo que a mãe lhe dissera, mas por se tratar do irmão de Constantino, esse casal passou a ser lhe extremamente desagradável. Além disso, Nicolau Levine, com o seu habito de mover convulsivamente a cabeça, despertava em Kitty uma invencível sensação de repugnância. Parecia-lhe que os olhos dele, grandes e terríveis, que fixamente a seguiam, exprimiam ódio e ironia. E evitava encontrar se com ele.

Anna Karenina - Liev TostoiOnde as histórias ganham vida. Descobre agora