A noite em que me tornei vampira

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Fui transformada em vampira em 1984.

Já foi há muito tempo. Tudo era muito diferente na época. Não nos chamavam drag queens, eramos transformistas ou travecas. Sobrevivíamos bem (ou mais ou menos bem) sem Grindr. O Tinder não existia, mas dávamos "like" aos homens que desejávamos ao lançar um olhar bem intenso e sabíamos que era "match" quando o olhar era retribuído.

Voltando aquela noite. Estava a atuar no clube, a dublar o "What A Feeling" da Irene Cara e estava absolutamente linda. Tinha resolvido estrear um elegante vestido vermelho, todo cravado de brilhos, mas que mal me deixava respirar dentro dele. Beleza sempre implicou sacrifícios, não é verdade?

Depois de atuar, fui para o balcão beber espumante e gin tónico. Uma das vantagens de trabalhar como drag queen é o direito a bebidas à borla. Naquele tempo, tinha um estômago de aço para o álcool e precisava de vários copos até ficar realmente bêbada. Depois do sexto copo, um homem aproximou-se do balcão.

- Prepare-me um Martini, por favor. - pediu ele.

Ele era um habitué do clube. Costumava vê-lo todas as noites de sexta-feira no fundo do clube à conversa com amigos. Era um homem muito elegante, usava roupa clássica e um corte de cabelo aprimorado. Nos anos 80, todas as pessoas cuidavam-se mais para sair à noite, mas, mesmo assim, ele sobressaía. Tinha um ar distinto, quase de realeza, e tinha um olhar misterioso, mas cativante. Experimentei meter conversa com ele.

- Então, que fazes por aqui?

- Hum... Vim ver-te. - disse-me, mostrando alguma surpresa com a pergunta - Quer dizer, vim ver vocês a atuar. Vocês são divertidos.

- Nem imaginas o quanto eu posso ser divertida. - disse eu, com o olhar mais sedutor que consegui fazer

- Ahaha! Tu realmente és um animal no palco.

- Ai, lindo, tu tens é que ver o animal que eu sou na... - E nesse exato momento entornei o copo para cima do meu vestido.

Fiquei com o vestido todo molhado de gin e toda a minha tentativa de sedução parecia arruinada. Tinha acabado de ficar sem bebida e sem homem.

- O teu vestido ficou todo molhado! Como te posso ajudar?

- Deixa estar. Eu vou para o camarim. Tenho um secador de cabelo lá.

- Eu posso ir contigo. Pareces um pouco embriagado já, eu levo-te até lá. - disse-me com um sorriso simpático.

Aparentemente, o meu plano de sedução afinal não tinha ido por água abaixo juntamente com aquele gin. Fiquei contente por um homem daqueles estar interessado em mim. O final daquela noite parecia promissor.

No camarim, ele ajudou-me a despir o vestido e a secá-lo com o secador. Ele pegava no secador com firmeza, com as suas mãos grandes, porém delicadas. Só imaginava aquelas mãos a apertar-me, enquanto me beijava.

- Imaginava que vocês tivessem um camarim maior para se preparar. Como é que vocês cabem todos aqui?

- Sim, isto aqui é um pouco apertado. - disse-lhe enquanto me aproximava devagar dele - Por isso é que me preparo em casa. Moro mesmo aqui em frente do clube.

- Isso é bom! O teu vestido já está seco. - disse-me ao entregar de volta o vestido.

Fiquei a olhar para ele. O meu desejo por ele aumentava cada vez mais e tínhamos chegado a um impasse. Nenhum de nós sabia mais o que dizer, mas eu tinha a certeza que ele estava com tanta vontade como eu.

Decidi agir depressa! Agarrei-o e beijo-o com ferocidade.

- Ei! Percebeste tudo mal! - gritou-me ele, enquanto se afastou rapidamente e interrompeu o beijo.

Fiquei sem reação.

- Não me leves mal. - acrescentou, de forma mais calma. - Mas eu não gosto de efeminados. És simpático, mas eu gosto de homens mesmo, não bichas.

Acho que não consegui esconder a deceção. A vontade que tinha era atirar-lhe o secador à cabeça, mas resolvi simplesmente sair, dignamente, sem lhe dizer mais uma palavra.


Retornei direta ao balcão das bebidas. Nada nos cura uma rejeição como um bom whisky duplo sem gelo. Sentia-me absolutamente arrasada. Óbvio que não foi a primeira vez que fui rejeitada, mas é uma sensação que nunca ninguém gosta.

Depois do copo de whisky, senti-me empoderada. Um pouco tonta, mas empoderada. Depois da situação com o outro, sabia que não podia acabar a noite sozinha. Ia agarrar-me ao primeiro homem que olhasse para mim e divertir-me toda a noite.

Reparei num homem que me olhava de forma tímida, mas intensa. Era um jovem, de olhar rasgado e com um cabelo muito escuro que contrastava com a sua pele pálida, muito pálida. Não era feio, mas definitivamente não era o meu género. Ainda assim, retribuí o olhar e aproximei-me.

- Gostei muito de te ver a atuar. - disse-me ele, nervoso.

- É... Geralmente, as pessoas gostam de me ver.

Não esperei mais e nem fiz mais conversa. Beijei-o e ele beijou-me de volta. Sentia-o tremer, mas peguei nele e fomos para minha casa.

Saí do clube tão embriagada, que não me consigo recordar bem de tudo do que se passou depois. Apenas consigo visualizar pequenos flashes.

Em minha casa, nem sei como tirei a roupa. O meu vestido, todos os meus adereços e a roupa dele ficaram espalhados por minha casa. Despidos de roupa e preconceitos, beijámo-nos encostados à parede.

Ele pareceu-me inexperiente. Era um pouco atrapalhado e parecia querer conter-se. Sei que tentou falar comigo, mas eu nem sequer lhe dei hipóteses. Não o tinha trazido para minha casa para o ouvir falar.

Estava deitada na cama, quando tudo se tornou bizarro. Não me recordo do que antecedeu aquele momento, mas senti uma enorme pressão na minha coxa. Reagi lentamente. Elevei-me um pouco e percebi que ele estava com a cabeça no meio das minhas pernas. Não percebi de imediato o que ele me estava a fazer, mas não estava a gostar.

- Pára com isso! - pedi-lhe

Ele afastou-se, mas, logo de seguida, senti um novo golpe na coxa. Gritei de dor e tentei fugir, mas não conseguia afastar a cabeça dele da minha perna. Estava tonta e fraca.

- O que estás a fazer? Deixa-me! Deixa-me!

Tinha sangue a jorrar da coxa. Parecia que ele estava a comer-me a perna à dentada! A minha consciência estava a abandonar-me juntamente com todo aquele sangue.

- Desculpa...

Mordeu-me uma terceira vez. A dormência da perna começou a espalhar-se para o resto do corpo. Sabia que ia morrer.

-Desculpa...

Ele não ia parar. Senti novos golpes, mas não conseguia mover-me. Desisti. Ia morrer nas mãos de um homem, a quem nem sequer tinha perguntado o nome.

- Desculpa...

A voz dele estava cada vez mais longínqua.

Não sei quanto tempo demorou o ataque dele, mas no fim ele olhou-me nos olhos. O mesmo rosto que eu tinha beijado há uns minutos, estava cheio de sangue. Na boca dele, tinham aparecido dois caninos pontiagudos. Pensei que tudo aquilo era alucinação. "Será que alguém me pôs droga na bebida?", pensei.

Apenas o ouvi dizer:

- Bebi demasiado do teu sangue. Eu não te queria fazer isto, Giovanna. Bebe agora o meu e vais te tornar como eu.

Ele mordeu o próprio pulso e deu-me a beber o seu sangue.


[Português Europeu]

Drag Queen VampiraOnde histórias criam vida. Descubra agora