CAPÍTULO UM

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Um ser humano normal pode suportar até mesmo dez minutos embaixo da água. Dependendo das condições e da temperatura, este número cai para três, mas por alguma razão inexplicável, eu pude aguentar vinte longos minutos dentro de um inferno sem escapatória. Os médicos não entendem como sobrevivi e afirmam que algo assim não se vê todos os dias. Dizem que nasci de novo. Eu fui uma exceção.

— Você sabe que cedo ou tarde vai ter que deixá-los ir, né? Não pode viver o luto até o fim da sua vida, Betina.

Paola começa a falar com a voz firme, mas vai diminuindo a intensidade conforme vê que continuo agachada, sentindo a água gelada do lago batendo nos meus dedos. O narciso amarelo boia de forma suave até eu soltá-lo completamente, contrastando na cor escura do lago. Sexta-feira é o dia em que eu completo o meu ritual sagrado, o único dia da semana em que eu choro por tudo aquilo que perdi. Contemplo a flor se perdendo naquele breu, do mesmo jeito que meus pais se perderam na noite do acidente. Uma única lágrima escorre silenciosa pela minha bochecha, enquanto me viro para encarar a amiga que faz questão de me acompanhar até aqui. Todas as sextas-feiras, faça chuva ou faça sol. Embora nunca queira admitir, sei que Paola faz isso por medo de que eu possa cometer alguma loucura.

O que ela não sabe é que suicídio nunca me pareceu uma saída, nem mesmo um atalho. As merdas da vida acontecem todos os dias, com milhares de pessoas. O único detalhe é que eu tive o azar de ter acontecido várias merdas de uma só vez.

— Eu só vou deixá-los ir quando descobrir quem causou o acidente, e você sabe muito bem disso, Paola.

Ela me olha com o seu olhar de não posso discutir com isso e através desse pequeno gesto, sei que ela não tentará me convencer de mais nada. O que mais gosto em nossa amizade é que, apesar de saber boa parte dos detalhes sobre o que houve comigo, Paola nunca me trata com pena. O que ela diz é sincero e os sermões não são à toa, pois entendo que a intenção dela é me ver seguindo em frente e não olhando para dentro do passado que eu deveria tentar esquecer. Mas hoje é sexta-feira, o dia em que eu levanto da cama, olho para o teto, e penso que somente por hoje, eu posso me conceder o direito de sofrer.

Antes de nos afastarmos, olho diretamente para o narciso que parece dizer adeus do ponto onde estamos, entre outras pétalas já soltas e sem cor que permanecem ali, secas e sem vida. Assim como aqueles pedaços aleatórios do que um dia já formaram uma flor exuberante, se houvesse uma cor para mim, ela certamente não seria amarela.

— Vê se coloca um sorriso nesse rosto, baranga! — Paola ri e me cutuca, dando uma piscadinha. — Hoje nós vamos sair! Aquela prova que o professor Rafael passou na terça-feira ainda está zunindo na minha cabeça. Qual é o jeito que você fala mesmo? Ah, é, hoje eu estou meio verde.

O carro acelera tanto que sai derrapando dali, o que é ótimo, porque me obriga a não ficar olhando para o lago, deixando Paola mais feliz e menos perturbada emocionalmente. Sei ser divertida e mesmo que relutante, muitas vezes eu tento sair com os meus colegas da faculdade. Cursar Psicologia foi a minha segunda opção mais provável, já que além de ajudar com a investigação particular que venho fazendo a respeito do que houve conosco há exatos doze anos, fez com que eu tentasse entender melhor a mente humana. Se a primeira opção ainda fosse válida, eu sei que jamais a largaria, mas ela deixou de ser uma opção há muito tempo. A única coisa que me faz pensar nela, é quando olho para o único quadro escondido embaixo do meu colchão, e admito baixinho o quanto eu gostaria que aquela tragédia não tivesse acontecido para que eu pudesse ser laranja mais uma vez.

O celular de Paola toca a música que nunca sai de sua playlist, uma mistura de rock alternativo com uma versão eletrônica, e mostra o nome de Caio na tela, o nosso amigo que costuma falar mais alto do que um megafone. Ela estica o braço para atender e colocar no viva-voz, já ciente de que eu a repreenderia se colocasse o aparelho no ouvido enquanto dirige. Depois de quase morrer em um acidente de carro, a menor das atitudes tende a parecer bem pior para você, do que para os outros que estão com você.

— Onde estão as minhas garotas? Estou esperando aqui na frente de casa, o sol está brilhando mais do que eu, e nem preciso dizer o quanto isso é ridículo. Enfim, e aí? A Betina está bem? Diz pra mim que a Betina está bem, querida, e que não foi dessa vez que ela se jogou naquele lago horroroso. — Caio continua falando, como se parecesse não saber que eu estou escutando tudo, só que eu sei que sabe. — Não sei como é que vocês estão, mas eu acordei tão bem, que até parece que eu sou uma mistura de rosa choquei com azul metálico. Quase um unicórnio feliz.

Não só Caio, como Paola e algumas outras pessoas com quem convivo, costumam tirar sarro com a minha mania de comparar as emoções com cores. Não é todo dia que se conhece alguém que realmente faz esse tipo de comparação, por isso entro na brincadeira junto com eles. Depois de passar por todas as cores, dar de cara com a morte e viver na penumbra por muitos anos, a última coisa da qual eu preciso é voltar para o preto. O cinza é aceitável. O preto é o que eu mais abomino.

Tudo começou por causa da pintura. Eu mal era um bebê falante e já conhecia as texturas das tintas, enquanto outros brincavam na areia e aprendiam a andar de bicicleta. Algumas meninas pediam bonecas e sonhavam com presentes comuns, mas eu explorava as mais variadas ferramentas para pintar os meus quadros. A menina prodígio de Ostala viveu o seu maior auge aos oito anos, justamente entre o ápice e o término. Um pássaro que aprende a voar e, sem querer, acaba chocando-se contra uma árvore. Um sonho bom que a gente nunca quer que acabe, mas sempre desaparece na melhor parte. Esse tipo de coisa que, embora possa parecer ruim, sempre pode ser ainda pior.

Entre outras, essas são as lembranças que eu guardo na minha caixa proibida. Nunca olhe para dentro. Você não pode olhar para dentro. Independentemente do que vier a acontecer, eu não preciso enfrentar todas as memórias armazenadas lá. Eu já as revivo demais na minha própria cabeça.

— Não finja não saber que ela está escutando tudo, Caio. Você sabe que ela sempre está.

— Eu sei que vocês sabem o que eu sei, mas qual a graça de nem sequer fazer uma cena sobre isso? — ele cochicha do outro lado da linha, e nós sabemos com quem é. — Tem uma cadela abanando o rabo bem aqui do meu lado, o que significa que ela também quer que vocês cheguem logo. Então acelera esse carro aí, Paola, e deixa de ser tão mulherzinha.

É o que ela faz, ao mesmo tempo em que desliga o celular e dirige rapidamente o olhar para mim. Contenho o impulso de gritar para ela não fazer isso, tendo vontade de dizer para ela manter os olhos fixos na estrada, não em mim, não em qualquer lugar além da pista. Não faço isso, mas desconto a apreensão nos dedos que estou apertando. Cerro tanto as mãos que elas chegam a doer.

— Diga que você está bem. Eu devo ser a pior amiga da face da Terra por sair de lá, daquele maldito lugar, e nem sequer perguntar isso ao menos uma vez.

Consinto com a cabeça em câmera lenta, assegurando para ela e também para mim.

— A cada sexta-feira fica mais fácil.

Mentira. Nunca fica mais fácil. Crio essas mentiras para fingir que a ardência no meu peito fica menor a cada semana, que a sensação um dia vai deixar de ser tão devastadora.

Paola é a melhor amiga que eu poderia ter, porque sabe que estou mentindo, mas compreende que é justamente baseada nas mentiras inventadas, que eu consigo ser livre e respirar de novo.


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