3. Uma gata aparece

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 Por tudo aquilo que relatei até aqui, o leitor desta narrativa pode imaginar a angústia que tomou conta de Max quando seus colegas decidiram que seu laboratório seria fechado.

Ele sabia que estava à beira de uma descoberta arrojada, sem precedentes – groundbreaking, como diria a comunidade científica internacional. Tratava-se de irromper em um território virgem, capaz tanto de modificar setores da tecnologia atual, como fornecer subsídios novos capazes de redirecionar alguns aspectos da própria pesquisa em física teórica avançada.

O resultado dessa pressão foi o ingresso de Max naquela que se pode caracterizar como a mais maníaca fase de sua vida. Sabendo que contava com apenas mais um mês antes de seu equipamento ser desmontado, ele começou a trabalhar em um ritmo a cada dia mais frenético. Pelo que pude depreender dos escassos contatos que mantivemos nesse período, ele praticamente passou a morar dentro de seu laboratório, onde improvisou uma cama com um colchonete, que recolhia durante o dia. Varava madrugadas fazendo experimentos, ao ponto em que sua aparência, em geral bem conservada mesmo com a agitação habitual, começou a dar alarmantes sinais de profunda estafa.

Apesar disso, ao longo dos dias ele procurou não descurar de seus compromissos acadêmicos corriqueiros, como aulas, orientações e atendimentos aos alunos, pois não queria dar ensejo a qualquer novo tipo de reclamação, diante de um quadro que já lhe era tão desfavorável. E foi dentro desse espírito de preservar um mínimo de normalidade cotidiana flutuante por sobre o vulcão interior que o consumia, que ele manteve funcionando o seminário semanal com seus orientandos de pós-graduação. Essa atividade era seguida pelos seus dois alunos de doutorado, já em fase final de redação de suas teses, e sua única orientanda no mestrado, Lenora Schrödinger. Esta última, como o leitor talvez se dê conta já pelo próprio título deste relato, vai jogar um papel decisivo na evolução dos acontecimentos aqui descritos.

Fui apresentado a Lenora uma tarde na lanchonete do Espaço Físico Integrado, onde, num intervalo do seminário da pós-graduação, ela estava tomando um café com Max. Isso ocorreu uns seis meses antes do dramático desenlace dessa história. Depois disso esses nossos encontros se repetiram outras vezes, e aos poucos fui ficando ciente de alguns detalhes sobre a vida dela.

Desde o primeiro contato que tivemos já era patente a forte impressão que ela causava sobre Max. Ficava até anedótico, em vista disso, o fato dele não ter mais aceitado orientar novos projetos de mestrado após tê-la conhecido. Dava a impressão de que ele tinha passado a desejar promover um espaço recôndito para eles dois, ali na própria "oficialidade" do ambiente acadêmico.

Fosse como fosse, diante da obsessão alimentada por Max acerca da continuidade de seu projeto experimental, era possível se notar que seus encontros semanais com Lenora constituíam uma saudável pausa capaz de trazê-lo de volta à realidade mais cotidiana. Lenora era, eu ousaria dizer, seu escape auto-consentido do mundo da abstração físico-matemática. Ficava claro que, para ele, esse relacionamento havia extrapolado os protocolos da relação orientador/orientanda, para tornar-se uma relação afetiva, embora, como se costuma dizer, de caráter "platônico".

E não era difícil imaginar porque as coisas haviam tomado esse rumo. Lenora Lambruzza era, aos 39 anos, uma mulher extremamente atraente. Alta e esguia, longos cabelos castanho-claros, com algumas mechas naturalmente descoloridas pelo sol, olhos cor de mel, traços delicados; um tipo esportivo e seguro de si. E talvez o que tivesse sido o toque fatal a fisgar Max, algo que a colocava na antípoda do otimismo normalmente contagiante dele: um persistente fundo de melancolia a demarcar sua expressão, como se a vida para ela não tivesse estado à altura de suas promessas. Vinda do interior do estado para a capital aos dezessete anos para fazer faculdade, formada em Física aos vinte e um, mas sem especiais pendores para lecionar, para ela havia soado como um toque do destino quando, atendendo ao recrutamento buscando "um recém-graduado em Física para atuar em setor de pesquisa com materiais numa indústria metalúrgica instalada em Joinville", ela teve seu currículo selecionado dentre o de diversos inscritos aparentemente mais promissores. Seu empregador lhe disse que a escolha se devera à natureza específica dos estágios e monitorias que ela fizera ao longo da graduação.

A GATA DE SCHRÖDINGER - Uma aventura no mundo quânticoOnde as histórias ganham vida. Descobre agora