Prólogo

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 Constitui um lugar comum dizer-se que um estabelecimento universitário é um microcosmo da sociedade. Porém, ao adentrarmos o campus, podemos entreter por algum tempo a ilusão de que penetramos num espaço alternativo, talvez por conta da habitual distribuição dos prédios entre as árvores. Uma ilha na cidade, seja por que ali a polícia só deve entrar se "convidada", seja pela noção bem mais sutil de que lá se cultiva a pretensão (hipócrita) de se estar buscando um conhecimento "desinteressado". Aliás, não é por questões de somenos importância que o filósofo Jürgen Habermas denominou uma de suas obras capitais Conhecimento e Interesse. Mas vejo que corro o risco de começar a divagar, ficando didático, questão de deformação profissional...

Não apenas o interesse pessoal perpassa grande parte das intervenções administrativas na universidade, como ainda parasita decisões coletivas institucionais, desviando com frequência as finalidades buscadas para bem além dos interesses científicos. Assim, não é de se estranhar que raras sejam as amizades criadas nesse ambiente que extrapolem para além das miudezas do cotidiano. Às vezes se consegue compartilhar algumas dicas úteis nas tarefas de ensinar e pesquisar, ou para se conhecer os atalhos administrativos, ou ainda para se tratar da espinhosa e onipresente política docente (que quase só se move, de fato, quando entram em jogo interesses salariais e de carreira, mas, de novo, divago...).

É por isso que o ocorrido com meu colega Max mobilizou-me tanto. Ele era dos poucos dentre os milhares de colegas professores a quem eu podia verdadeiramente considerar como amigo, num sentido amplo. Até porque os interesses que nos uniram durante o tempo, infelizmente breve, que durou nossa convivência não tinham nada a ver diretamente com questões de ensino, administração ou política docente. E tocava a pesquisa apenas tangencialmente. Nossa amizade foi, antes, resultado de uma atração de opostos, pode-se dizer. Sempre atuei no campo da Teoria do Conhecimento, e sendo a filosofia uma disciplina eminentemente especulativa (embora extremamente rigorosa), foi de certa forma um bálsamo para mim ter conhecido em Max um físico experimental capaz de fazer de sua experimentação prática quase uma filosofia de vida, sendo capaz de aliar rigor e imprevisto. Para ele, as dúvidas profundas jamais adquiriam um caráter meio paralisante para sua atividade de pensar, isto é, de pensar cientificamente, metodicamente. Digo isso por comparação à minha própria trajetória pela via do conhecimento, em que por diversas vezes reneguei filósofos cujo pensamento até então seguira devotamente, para dar-me conta logo em seguida de que o vazio deixado por aquela ausência conceitual transbordava para minha vida como um todo. O que terminava gerando um tipo de depressão que só cedia quando outra vez me empolgasse com algum novo autor, através de um processo longa e duramente depurado.

Max era o oposto disso. Suas ideias e hipóteses de trabalho sucediam-se em impressionante velocidade. Jamais arrefecia em tentar caminhos experimentais diferentes, até categorialmente contrários ao que buscara logo antes, a cada vez que sua pesquisa chegava a algum impasse, mesmo que provisório. E seu repertório parecia inesgotável. Para mim, conversar com ele acerca do que se pode apelidar, um pouco canhestramente, a "natureza da realidade", tema central nas minhas próprias pesquisas filosóficas, era como embarcar em uma montanha-russa conceitual. Sua contínua agitação mental transbordava em um gestual irrequieto; poder-se-ia dizer que pensava também com as mãos, com o corpo todo, aliás.

Eu conhecia pessoalmente o que eram episódios depressivos, derivados dessa minha propensão a juntar num mesmo processo a vida pessoal e a atividade intelectual. Por isso não tinha dificuldade em notar em Max a profunda tristeza que lhe advinha de constatar que certa linha de sua experimentação não estava dando os resultados almejados. O caso é que Max poderia vir a ser caracterizado como um maníaco-depressivo se suas fases de euforia fossem intensas e passageiras, e as de depressão longas e penosas. Mas, paradoxalmente, com ele era o contrário que ocorria! A cada fracasso ele tornava a se remeter em boa forma rapidamente, e uma nova fase eufórica se seguia então com intensa produtividade. Hoje, depois de tudo o que presenciei, com os inusitados acontecimentos que vou relatar aqui, posso dizer que Max era na verdade o que se costuma chamar um gênio.

Eu o procurara inicialmente para tirar dúvidas acerca de certas formulações matemáticas que estava tendo dificuldade em decifrar num livro tratando da mecânica quântica. Isso constituía para mim uma nova linha investigativa, com a qual tentava dar um tratamento lógico para algumas das anfibologias kantianas. A mecânica quântica parece conseguir encontrar um lugar à coexistência quase pacífica de opostos lógicos, dependendo evidentemente de a qual linha interpretativa um físico se filie enquanto teórico.

Após uma conversa inicial, Max me convenceu a frequentar como ouvinte seu curso de física experimental, ao longo do qual acabei me dando conta de que, pela via de um olhar de pesquisador aos recessos infinitesimais da matéria, aquilo que nos habituamos a chamar de natureza parece ter muito pouco de "natural", no senso comum da expressão.

Faz-se mister registrar ainda que Máximo Pereira Ramos, conhecido de todos por Max, não tinha nada no seu estilo pessoal capaz de denotar o caráter excepcional de seu conhecimento. Nenhum tom de grandiosidade, nenhuma arrogância professoral, e uma completa ausência de pretensão de que a ciência constitua um conhecimento perfeito, ou que possa ser a salvação do mundo. Max se comportava, antes, ao modo do que se convencionou chamar em Santa Catarina um "manezinho da Ilha", isto é, o típico habitante de Florianópolis descendente de famílias tradicionais, que costuma fazer da informalidade das maneiras sociais a marca de quem continua a se comportar na metrópole dos dias atuais da mesma forma que se habituara a viver na ilha de sua infância, em que praticamente todos se conheciam. Talvez isso contribuísse para que a maioria de seus colegas de departamento na universidade, mais formais no trato, e dentre esses alguns de estilo carreirista, o considerassem uma pessoa "difícil". Paradoxalmente, por não se prestar às liturgias e conveniências dos que colocam a busca exasperada pelo destaque na carreira como objetivo supremo da vida profissional, ele se via colocado para escanteio na atividade profissional. Assim, aquele que seria talvez o único autêntico gênio a trabalhar no departamento de física, capaz quem sabe de vir a mudar alguns dos fundamentos de nossa compreensão da realidade, era sistematicamente esnobado pelos próprios pares. E tal atitude vinha exatamente daqueles colegas que mais se beneficiariam de uma futura notoriedade que o trabalho de Max poderia um dia trazer (se chegasse a bom termo), tanto em relação ao prestígio do departamento quanto à obtenção de novas verbas.

Foi por essa conjunção de fatores que Max, quando de seu desaparecimento, encontrava-se simultaneamente, aos 46 anos, no auge de sua criatividade científica, e no seu pior momento profissional na instituição.  

A GATA DE SCHRÖDINGER - Uma aventura no mundo quânticoOnde as histórias ganham vida. Descobre agora