Entretanto, se a senhora não conhece as odes de Horácio e os Amores de Ovídio, se nunca leu a descrição da festa de Baco e não tem notícia dos mistérios de Adônis ou do rito afrodísio das virgens de Pafos, que em comemoração do nascimento da deusa iam certos dias do ano banhar-se na espuma do mar e oferecer as primícias do seu amor a quem mais cedo as cobiçava; se ignora tudo isto, rasgue estas folhas, ou antes queime-as, para que sua neta, achando as tiras que ficarem sobre a mesa, não se lembre de fazer delas papelotes.

Se ao contrário apreciou esses trechos admiráveis da literatura clássica, pode continuar a ler, pois não achará imagem, nem palavra que revolte o bom gosto: sensitiva delicada dos espíritos cultos.

Anunciada a ceia, atravessamos o jardim para ir à sala do serviço.

Não posso deixar de fazer-lhe uma breve descrição dessa parte da casa, que ocupava a ala direita do edifício, formando uma espécie de pavilhão. Era o palácio encantado do sibaritismo, que só de longe em longe e nas horas mortas da noite, abria suas portas a chave de ouro para alguns adeptos de seu culto ou para algum profano que desejasse iniciar-se nos lúbricos mistérios.

Entremos, já que as portas se abrem de par em par, cerrando-se logo depois de nossa passagem. A sala não é grande, mas espaçosa; cobre as paredes um papel aveludado de sombrio escarlate, sobre o qual destacam entre espelhos duas ordens de quadros representando os mistérios de Lesbos. Deve fazer ideia da energia e aparente vitalidade com que as linhas e colorido dos contornos se debuxavam no fundo rubro, ao trêmulo da claridade deslumbrante do gás.

A mesa oval, preparada para oito convivas, estava colocada no centro sobre um estrado, que tinha o espaço necessário para o serviço dos criados; o resto do soalho desaparecia sob um felpudo e macio tapete que acolchoava o rodapé e também os bordos do estrado. Os aparadores de mármore cobertos de flores, frutos e gelados, e os bufetes carregados de iguarias e vinhos, eram suspensos à parede. Não pousava o pé de um móvel na orla aveludada que cercava a mesa, e parecia abrir os braços ao homem ébrio de vinho ou de amor, convidando-o a espojar-se na macia alcatifa, como um jovem poldro nas cálidas areias da várzea natal.

Pela volta da abóbada de estuque que formava o teto, pelas almofadas interiores das portas, e na face de alguns móveis, havia tal profusão de espelhos, que multiplicava e reproduzia ao infinito, numa confusão fantástica, os menores objetos. As imagens, projetando-se ali em todos os sentidos, apresentavam-se por mil faces.

Não lhe falo da ceia que nada tinha de especial. Suntuosa e delicada, como os sabem preparar aqui, sorria aos olhos e trescalava de aromas penetrantes e deliciosos, que iam prurir as fibras gástricas. Esse perfume sibárico e o aspecto brilhante das iguarias esquisitas, entre as irradiações do cristal e os reflexos áureos, rubros ou violáceos do madeira, do porto e do borgonha, é talvez o mais delicado acepipe que um anfitrião de gosto oferece aos seus hóspedes; porque nesse bocado homérico os olhos e o olfato servem com fartura ao paladar um pouco de tudo; um primor de todos os manjares que a capacidade do estômago não permite absorver.

Sentamo-nos dois a dois, porque só havia na sala quatro cadeiras. Não se espante; eram cadeiras medidas para dois corpos, espécies de pequenos sofás de palhinha, onde se estava mais do que comodamente. Esta singularidade era um símbolo da união, ou melhor, da comunhão, que o dono da casa queria que houvesse durante a ceia: não eram oito pessoas, mas quatro amigos que se divertiam em amável companhia. Acrescia que a longa separação das cadeiras, e a espessa cortina de flores, deixava a cada um plena liberdade: era ao mesmo tempo a solidão e a convivência.

Ao anunciar da ceia, Lúcia tomou-me o braço que ia oferecer-lhe. Sentamo-nos a um dos lados da mesa em face de Sá. O Sr. Couto, como de rigor, impava de gula e fatuidade, defronte da sonolência do Rochinha e à ilharga de uma linda espanholita, que o olhava à sorrelfa com um momo de petulante zombaria.

Lucíola (1862)Onde as histórias ganham vida. Descobre agora