Capítulo XVI

769 42 2
                                    

Dias depois estava em casa de Lúcia; conversávamos tranquilamente como dois bons amigos num momento de expansão.

Ela me contara vagamente, sem indicação de datas nem de localidades, as impressões de sua infância passada no campo entre as árvores e à borda do mar; seu espírito adejava com prazer sobre essas reminiscências embalsamadas com os agrestes perfumes da mata, e por vezes a poesia da natureza fluía no seu ingênuo entusiasmo.

Pela primeira vez também, desde o momento em que a conhecera, Lúcia se mostrara curiosa a respeito do meu passado, de minha família, e de minhas ambições de futuro. Até então só conhecia de mim o meu nome e a minha pessoa; nem mostrava desejar mais. Os meus sentimentos, a minha vida íntima era um mundo em que se julgava profana, e no qual não ousava ou não queria mesmo penetrar.

Já tinha por vezes refletido nessa abstenção, a qual aparentemente denotava que Lúcia só estimava em mim o homem exterior; o moço que encontrara num dia de desenfado, e que lhe agradara pela figura, pelos modos, ou antes por capricho seu. Pouco lhe importando saber donde vinha e para onde ia esse companheiro de viagem, unira-se a ele para amenizar, durante o tempo que seguissem o mesmo rumo, os incidentes do caminho e a solidão do pouso.

Naquele dia, pois, satisfazendo o seu desejo, falei-lhe pela primeira vez do meu verdadeiro eu; das minhas esperanças, das minhas afeições, dos meus sonhos. Ela ouvia tudo com evidente interesse: o nome de uma pessoa querida por mim, ou de parente ou de amigo; uma data de família; uma localidade que fora teatro de algum dos pequenos acontecimentos da vida; tudo se gravara tão rápida e profundamente no seu espírito que as suas observações não pareciam de quem acabava de ouvir, mas de quem acompanhara dia por dia os fatos que eu lhe contava. Identificando-se com a minha alma, graças à admirável flexibilidade do senso íntimo da mulher, ela sentia e comovia-se, recordando as minhas afeições; e nutria-se das minhas ambições, sonhando com elas, e dourando-as aos reflexos de sua rica imaginação.

Lúcia trazia nessa manhã um traje quase severo: vestido escuro, afogado e de mangas compridas, com pouca roda, simples colarinho e punhos de linho rebatidos; cabelos negligentemente enrolados em basta madeixa, sem ornato algum. Em vez dos pantufos aveludados que costumava usar em casa, no desalinho, calçava uma botina de merinó preto, que ia-lhe admiravelmente, porque ela tinha o mais lindo pé do mundo. Quando o vento que entrava pela janela erguia indiscretamente a fímbria da saia, apesar do movimento rápido que a conchegava, descobria-se a volta bordada de uma calça estreita, cerrando o colo esbelto da perna divina.

O homem é um sistema de contrariedade.

As confidências mútuas, as expansões d'alma despegada do seu invólucro material, o recato austero do traje que ocultava belezas criadas para viver em plena luz e ao ar livre, como as flores do trópico, deviam alhear-me os sentidos. Mas bem longe disso, no fim da nossa conversação remordiam-me as recordações. Meu olhar insinuava-se perfidamente pela abertura do colarinho modesto que cingia uma garganta pura, espreguiçava-se pela seda avara que entufava a marmórea rijeza de um seio comprimido; enleava-se nas pregas fofas que quebravam a harmonia das formas.

Tomei as mãos de Lúcia sorrindo, e meus olhos foram à porta vendada de sua alcova. Ela ergueu-se rapidamente, e disse-me com um modo ríspido:

– Vou sair!

Era a primeira recusa que eu sofria.

O constrangimento de Lúcia tinha ido sempre em aumento; mas nunca, até ali, o meu desejo encontrara uma resistência; nunca uma desculpa, um pretexto, o contrariara. Ainda pronta para sair, no momento de entrar no carro, já no teatro ou no passeio, bastava uma palavra minha para fazê-la voltar, muda e fria, é verdade, mas obediente e resignada. Em qualquer ocasião, a qualquer hora do dia ou da noite, se meu lábio procurava o seu, achava-o, seco e áspero, mas dócil à carícia.

Lucíola (1862)Onde as histórias ganham vida. Descobre agora