Capítulo VI

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Sá habitava, num dos arrabaldes da corte, uma chácara, que caprichara em preparar.

Com trinta anos de idade, um caráter fleumático e uma imaginação ardente, o meu amigo tinha errado a sua vocação; a natureza o destinara para milionário, tal era o seu desprezo pelo dinheiro quando se tratava de realizar um de seus mil sonhos dourados. Gozando do conforto e mesmo da elegância que lhe permitia uma folgada abastança, as flores que ia colhendo pelo caminho estavam longe de satisfazer-lhe as fantasias orientais; por isso impunha a si mesmo o sacrifício de acumular algumas pequenas reservas, fruto das economias de muitos dias, para consumi-las em poucas horas, com um desapego selvagem.

A alma obcecada pelo trabalho, irritada pelas migalhas de prazer que babujava aqui e ali, tinha de tempos a tempos necessidade de um banho russiano. Nesses dias Sá dava férias às ocupações graves, convidava alguns amigos, e oferecia à imaginação um pasto régio. Era o reinado efêmero da devassidão, naquela existência alegre, mas calma de ordinário.

A sua casa de moço solteiro estava para isso admiravelmente situada entre jardins, no centro de uma chácara ensombrada por casuarinas e laranjeiras. Se algum eco indiscreto dos estouros báquicos ou das canções eróticas escapava pelas frestas das persianas verdes, confundia-se com o farfalhar do vento na espessa folhagem; e não ia perturbar, nem o plácido sono dos vizinhos, nem os castos pensamentos de alguma virgem que por ali velasse a horas mortas.

Cheguei por volta de meia-noite.

Já estavam reunidos os convidados: Lúcia, três belas mulheres que eu conhecia de vista, e um senhor de cabelos e barbas brancas, vestido com esmero extremo, mas com alguma excentricidade inglesa; um desses velhos ainda verdes que se esforçam em reconstruir sobre os últimos rescaldos de fogos extintos, com o auxílio de um empertigamento cômico, uma atividade elástica e um fátuo repertório de anedotas galantes, a mocidade fictícia que só a eles próprios ilude. Sá mo apresentou com estas palavras:

– O Sr. Couto, capitalista.

O sexto convidado era um moço de dezessete anos, o Sr. Rochinha, que trazia impressa na tez amarrotada, nas profundas olheiras e na aridez dos lábios, a velhice prematura. Libertino precoce, curvado pela consunção, tinha o orgulho do vício, que estampara nas faces, receando talvez que o insultassem pondo em dúvida os seus brasões de nobreza, conquistados com o copo em punho nalguma tasca imunda. Se fosse pobre, o Sr. Rochinha teria fumaças de poeta byroniano; mas ainda era rico da herança que esbanjava, e portanto não passava de um moço gasto!

Sá tinha jeito para escolher os seus convidados. O contraste do vício que apresentavam aqueles dois indivíduos: o velho galanteador, fazendo-se criança com receio de que o supusessem caduco; e o moço devasso, esforçando-se por parecer decrépito, para que não o tratassem de menino; essa antítese viva devia oferecer ao observador cenas grotescas. O que eu vi entrando era uma pequena amostra.

O Sr. Couto, fresco e repolhudo, bamboleando-se na cadeira, fazia sortes que as mulheres aplaudiam, e consumia o terceiro copo de água gelada, para abrandar o fogo interno. O Sr. Rochinha, derreado pelo sofá, erguia às vezes a cabeça pesada de sono e torpor para absorver um cálice de conhaque da garrafa que tinha ao lado.

Sá, que se embalançava numa cadeira de palha, saboreando o antegosto das delícias gastronômicas, ergueu-se para receber-me:

– Só esperávamos por ti. Onde te meteste no teatro, que não te vi?

– Estive do lado oposto...

– Cuidei que nos encontrássemos na saída. É meia-noite; vamos cear. Ao som do tímpano apareceu um criado, que recebeu ordem de servir.

A reunião nada tinha ainda que assustasse os bons costumes. À exceção de alguns gracejos dúbios da galantaria enrugada do Sr. Couto, conversava-se alegremente como no mais aristocrático salão. Havia mesmo um ligeiro tom de cerimônia, que, se não era bastante para acanhar, tirava contudo ao diálogo o colorido vivo e animado que lhe dá a palavra solta.

Lucíola (1862)Onde as histórias ganham vida. Descobre agora