Me apressei e deitei na cama, com vários cobertores enrolados no meu corpo. Entretanto, o sono não chegava.

Virava meu corpo de um lado para o outro, mudava o lado do travesseiro para o mais gelado e nada de conseguir dormir. Era como se minha mente não desligasse, e para piorar, a música que irei tocar com Arabesque não parava de ressoar baixinho na minha cabeça e não importava o que fizesse nada a afastava completamente, as notas sempre voltavam.

Mas depois de um longo tempo consegui finalmente descansar.

E de brinde acordei atrasada.


  ♪♪♪  


Meu despertador tocava pela vigésima vez e apenas na oitava consegui levantar e cessar aquele barulho infernal. Cambaleei até o banheiro e tomei uma ducha rápida apenas para despertar. Em seguida fui até a sala, peguei minha mochila, um casaco (não vamos cometer o mesmo erro duas vezes) e sai de casa.

Fui andando até o Conservatório e parei em uma padaria que tinha ao lado. Comprei a maior quantidade de café que pude e quatro pedaços de bolo, para compensar o jantar que fora um grande nada. Comi um terço lá dentro e terminei de comer o resto enquanto entrava na sala do curso.

Meu professor já estava lá quando cheguei, estava calmo como nunca esteve e isso me deixou com uma pulga atrás da orelha.

Edgar Adagietto, o mais jovem e severo professor de piano desta escola. Ele nunca está satisfeito, são raras as vezes que faz um elogio sobre a performance de alguém. E outro detalhe importante: possui o dom de me assustar com seus gritos repentinos.

— Bom dia, Edgar — o cumprimentei casualmente.

Ele olha para seu relógio de pulso e depois volta a me encarar, seus olhos azuis eram como lâminas de gelo e me causaram arrepio.

— Está atrasada senhorita Scherzo — concluiu com um suspiro. — Sente-se logo garota, temos pouco tempo.

Sentei-me em frente ao piano no mesmo instante. Não iria desafiá-lo, afinal, tinha amor à vida.

— Toque a peça que escolheu para o exame final. Preciso ver o quanto a senhorita praticou durante a semana — falou rispidamente.

Engoli em seco. Fiquei tão ocupada com o dueto de Ara que acabei deixando as outras músicas de lado.

Que Chopin me dê forças e não chore ao me ouvir tocar sua Sonata No. 2 Op. 35 em B-flat menor.

Respirei fundo e deixei minhas mãos afundarem as teclas no ritmo da partitura. Estava no último compasso quando Edgar começou a gritar:

— O andamento está errado, você está acelerando o primeiro e o quinto compasso e atrasando o segundo e terceiro. E está confundindo muitas coisas, quando precisa ser forte você toca mezzo piano, quando é pianíssimo você toca fortíssimo. E não vou nem comentar o crescendo que sequer existe! É isso que você vai apresentar para a banca?! Acha realmente que vai conseguir uma bolsa para o próximo semestre tocando desse jeito?! Que absurdo, Scherzo! Chopin está derramando lágrimas de frustração e dor depois de ouvir tamanha blasfêmia! Estou com vergonha de ser seu professor, Lyra!

Ignorei os insultos cotidianos e armazenei apenas as informações necessárias. Andamento, dinâmica, o crescendo... Tudo tem que estar perfeito para o teste, tenho que fazer Chopin sorrir e se orgulhar.

Toquei novamente a sonata, prestando mais atenção nos pontos que meu professor apontou. Afinal, mesmo sendo o ser humano mais rude e explosivo da face da Terra ele tinha razão.

Perdi as contas de quantas vezes tive que recomeçar a música, mas compensava quando eu mesma já conseguia sentir o resultado de tantas idas e vindas.

As aulas do dia finalmente acabaram e foram mais cansativas do que eu esperava, provavelmente devido à correria de fim de semestre. Todos estão mais agitados e nervosos para apresentarem suas músicas para a banca, e com razão. Os juízes são mais severos, até mais que Edgar, e isso já é motivo suficiente para deixar qualquer um ansioso.

Sentei-me em um banco perto da sala de Arabesque esperando-a para podermos ensaiar, mas ela não aparecia. Fiquei cerca de meia hora aguardando por sua chegada, mas nada da maldita loira.

E foi só pensar na diaba que ela me liga.

— Arabesque Barcarola espero que a senhorita tenha bons motivos para estar atrasada ou eu vou te matar com uma colher de chá — falei irritada.

— Desculpe Lyra! De verdade! Mas... — ela parecia hesitante ao falar. — Minha ex veio me ver na hora do almoço e meio que eu acabei vindo com ela para casa...

— Espere um instante, você faltou as suas aulas da tarde?! — exclamei indignada. — Quanta irresponsabilidade, Ara! Furar comigo até vai, mas com o seu curso?! E tudo para ganhar uma transa?! Pelo amor, Arabesque! Aprenda a ter juízo, não somos mais adolescentes!

— Desculpe Lyra, mas eu sentia tanta falta dela...

— Eu sei... Mas da próxima pense um pouco antes de matar aula, está bem? — falei um pouco mais calma. — E diga a ela que mandei lembranças.

— Sim senhora! Bom, agora preciso desligar... Até amanhã, Lyra! — em seguida Ara encerrou a ligação.

Respirei profundamente e me levantei, a escola estava praticamente vazia, as poucas pessoas que ainda estavam por ai se trancafiaram em alguma sala para ensaiar, e pensei fazer o mesmo. Afinal, este lugar não tem nenhuma distração diferente da minha casa.

Entrei na primeira sala que tinha um piano e comecei a ensaiar a mesma Sonata que toquei mais cedo. Porém depois de ouvi-la setenta vezes na aula não aguentava mais e decidi mudar o repertório.

Toquei um acorde aleatório apenas para pensar no que tocar e em algum lugar próximo ouvi um violino ressoando as primeiras notas de Rondo Capriccioso. E isto me fez começar a tocar, acompanhando o som que tinha de fora.

Compasso por compasso, a sintonia era perfeita. Era uma dança divertida entre dois estranhos que nunca se encontrariam. 

Mozart Terminou ComigoWo Geschichten leben. Entdecke jetzt