Da Mariá

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Mariá se escondia, então, num espaço secreto. Por aqui chamaríamos de "ateliê", mas no vocabulário de lá não existe uma palavra para definir locais específicos do trabalho com arte. Explico em uma breve frase: arte não é trabalho, é terrível pensar em tamanha perda de tempo. Se em nosso país a arte já ganha suas críticas, imaginem no país cinza de Mariá! Chega a ser crime!
Não entraremos, contudo, nestas regras morais tão inflexíveis para descrever as pinturas que lá repousavam. O trabalho de Mariá é belo; se você pudesse ver por seus olhos, se encantaria! Suas pinturas se fazem em coloridas camadas, pouco a pouco. Pulam amarelo, vermelho, verde da pequena paleta para a tela de tecido cru — feita pela própria Mariá, que menina talentosa! Todos os instrumentos são improvisados, dado que, como contei, arte não é algo disseminado por lá e não há pincéis próprios ou belas aquarelas. Mariá usa um pincel de parede (ainda manchado de cinza), uma espátula de obras, uma esponja de banho, folhas secas caídas de árvores, uma escova de dentes. Suas tintas vinham das flores arrancadas — um último resquício de cor — e — vejam só! — dos dejetos coloridos despejados pelas fábricas.
Mariá, como vosmicê já deve ter percebido, era diferente dos outros com quem convivia. Há quem pudesse dizer que pertence a um outro país, outro planeta, outra dimensão. Para tal ideia, não só sua secreta ocupação merece ser destacada: falta ainda o mais aterrador detalhe, a mais acentuada de suas inadequações.
Mariá não sorria como os outros.
Não que fosse menina infeliz, ressalto. Seus sorrisos se mantinham guardados e escapavam de maneira espontânea quando pintava ou saltava na chuva. A questão já foi respondida indiretamente no parágrafo anterior: quando digo que Mariá não sorria como os outros, não digo que ela não sorri. Digo que seu sorriso não é permanente, não é constante, não se sustenta para além das situações alegres. Quando está triste, está triste e seu rosto acompanha sua tristeza. A raiva a acomete o corpo e espírito, assim como o fazem medo, repulsa e outras emoções mais.
Mariá tentava disfarçar, forçava o sorriso quando no meio de outros. Suas bochechas estavam doídas quando voltava ao lar, e de novo precisava torturá-las para também enganar seus pais (pois mesmo eles tinham o tal permanente sorriso). Para seu mapa mental, informo: a casa de Mariá ficava a sudeste do Templo, bem ao lado da fábrica onde seus pais trabalhavam e para onde também a divindade a mandaria em breve.
E havia também as pílulas, que esqueci de mencionar graças às tentativas de esquecimento por meio de Mariá. Placas e placas e anúncios as mostravam como a grande fórmula da felicidade, descoberta pela divindade e então compartilhada com seu povo. Todos os dias, centenas de cidadãos pegavam a quota de suas famílias nas quatro grandes farmácias construídas ao redor do Templo (em desenho de cruz, uma em cada ponto cardeal).
Como todas as outras famílias, os pais de Mariá conservavam esta norma: consumiam diariamente a tal pílula, como ensinaram a Mariá e esperavam que obedecesse.
"Precisa tomar sua pílula antes de dormir, querida. Serve para afastar os males e trazer sorrisos". Mariá dispensava. "Deves aceitar! Felicidade é uma dádiva, a recebemos pelas pílulas", a mãe insistia. Mariá sentia-se bem, havia trabalhado em suas pinturas o dia inteiro e não precisava de uma outra felicidade. Disfarçou e mais uma vez não engoliu a cápsula, atirando pela janela logo que se viu sozinha. A mãe, ingênua nesta trama, dava-se por convencida e só retornava na manhã seguinte.

MariáWhere stories live. Discover now