Constatação

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Sonhava com um conjunto de ilhas, cada ilha representava uma classe social e os direitos do povo.

Alessandra se viu em pé em uma das ilhas, admirando as outras.

De repente ela foi jogada longe, tentou ver o que havia acontecido mas só conseguia escutar vozes, buzinas e o barulho do vento.

Mais um empurrão, só que dessa vez ela sentiu algo caindo sobre si, era areia.

Agora ela conseguia ver a máquina gigante jogando areia sobre ela.

Tentou gritar, mas estava sufocada.

Tentou cuspir a areia, mas não saia nada de sua boca.

Por que ela estaria sufocada então? Foi então que ela acordou.

Alessandra não estava na sua casa, muito menos na comunidade da Maré.

Estava em frente ao hospital Universitário, na ilha do fundão.

Suas pernas penderam, ela tocou seu rosto, suas roupas, havia ido dormir com aquela blusa e aquela calça.

Como teria ido parar ali?

Olhou ao redor, estava tudo escuro e silencioso, só o hospital tinha luz.

Como teria andado até ali? Por que teria andado até ali?

Será que suas crises de sonambulismo tinham voltado?

Elas tinham começado após o segundo semestre da faculdade e haviam acabado no fim de 2009.

Por que agora? Por que quase uma década depois?

Precisava levantar, precisava voltar para casa. Inútil, seu esforço era inútil. Não conseguia levantar, não ali, não tão perto assim de tudo...

Um som alto e uma luz vermelha cortaram seus pensamentos, ela tentou achar a origem do som, era uma ambulância que se aproximava da entrada do hospital.

Alessandra se perguntava se a entrada emergencial era realmente ali.

Ela tentou mais uma vez se levantar.

Continuava a se questionar como havia parado ali. Por que logo no lugar que tinha acabado com seus sonhos?

Em 2007 Alessandra cursava serviço social, seu curso era de período integral. No início de 2008 começaram os rumores de que seu curso seria transferido para a unidade da urca, seu curso continuaria integral. Ela começou a ficar ansiosa pois essa mudança seria ruim.

Não tinha como pagar ônibus todos os dias para ir para a Urca, na maioria dos dias ela fazia o trajeto da Maré até o campus a pé, abrindo exceções quando a aula terminava tarde, seu noivo na época tentou ajudá-la, mas não aguentou quando as crises ficaram fortes demais. Ele tinha sido seu primeiro namorado, eles planejaram tudo... mas as vezes não há o que fazer.

Ele foi embora, deixando a casa na favela para ela e ajudando com algumas despesas da casa por algum tempo. Seus pais tinham se mudado para o sul para ficar com a avó de Alessandra e ajudavam como podiam.

Nessa época ela começou com a medicação.

O semestre acabou e o que era boato virou realidade, o curso foi transferido para urca e todos os alunos agora teriam aula lá.

Alessandra tentou vender doces, tentou ser manicure aos finais de semana, mas não era o suficiente e no final do quinto período com duas matérias reprovadas por falta, ela trancou o curso.

Arrumou um trabalho, depois de 3 meses em casa, com a ajuda de uma amiga.

Era caixa de mercado, depois de um tempo ela mudou de emprego, começou a trabalhar em uma lojinha perto do aeroporto. Ainda trabalhava lá.

Parou para pensar em todos os sonhos que tinha, queria ajudar a comunidade, cresceu com esse sonho depois de ver seu amigo morto pelo tráfico. Queria fazer algo para evitar que mais casos acontecessem, mas tudo acabou com o fim da faculdade.

Não tinha ânimo para sonhar mais, aprendeu de novo que as vezes não há o que fazer.

Percebeu que novas ambulâncias chegando, finalmente ela tinha conseguido se levantar e via as pessoas muito agitadas saindo das ambulâncias. Tentou chegar mais perto para ver, conseguiu ouvir que estava tendo troca de tiros dentro da favela.

Sentiu um embrulho no estômago.

Começaram a tirar pessoas que foram baleadas das ambulâncias.

Viu rosto conhecidos.

Será que ela poderia ter evitado aquilo? Será que a frase "não há o que fazer?" não seria como uma doença? Era hora de mudar, havia decidido.

Começaram a tirar a última vítima, ouviu dizer que era uma mulher que estava com 50% do corpo queimado.

Chegou mais perto, queria fazer algo caso fosse alguma conhecida.

Foi então que ela viu. A mulher na maca era ela.

Começou a sentir uma dor muito forte na cabeça, sentiu como se estivessem dando um choque no seu cérebro e depois o nada.

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