parte um: isolada

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Capítulo I

O sangue de Micau já tinha virado álcool a muito tempo. Ou talvez ela só tivesse perdido a noção total do tempo e, visto a maneira como ela cambaleava entre a multidão, era mais provável.

O mundo era feito de ouro e joias coloridas foscas, sobrepostos em veludo molhado. As pequenas lâmpadas douradas penduradas em fios semelhantes a barbantes, cruzavam o céu escuro de prédio em prédio.

O ar estava úmido e pesado, misturado ao odor humano e as especiarias recém-chegadas no porto. As luzes, os tecidos, as pessoas, não passavam de um tornado desfocado de cores e sorrisos.

Micau se apoiou em uma parede. Sua cabeça latejava e o estômago revirava-se. Fechou os olhos.

Não percebeu o vômito até atingir suas sapatilhas novas e a barra do vestido branco. E só percebeu de quem vinha quando sentiu a queimação na garganta.

A imagem seria trágica se não fosse cômica. Com o véu e o vestido brancos com o cinto vermelho, a fantasia perfeita da Virgem Escolhida, ela parecia uma noiva deixada no altar.

E talvez equivalesse a uma em valor. Da mesma maneira que está noiva não é suficiente para quem a abandona, Micau não havia sido suficiente para quem ela amou.

Se estivesse sóbria, a ansiedade e tristeza estariam consumindo suas vísceras, de maneira que a levara a não estar na condição infeliz.

O pensamento fez a garota sorrir, o sarcasmo pingando de seus caninos como veneno caindo de presas. Micau não esperava que um coração partido doeria no corpo todo.

Regurgitou e soluçou, o corpo dobrado para a frente, como que expulsando as memórias, querendo chorar. E as lágrimas realmente rolaram, mesmo que desapercebidas.

Enquanto isso, o mundo continuava ao seu redor. Cores e confete explodindo, juntamente com milhares de vozes cantando e gritando, mas tudo não passava de sombras a distância.

Após alguns momentos, Micau se viu no chão, mãos e joelhos ralados. Mais uma risada sardônica. Havia desvantagens em dançar e pular uma madrugada inteira, buscando esquecimento completo. Busca contínua, esta.

- Micau.

Ela o imaginou proferindo seu nome. O seu nome, de verdade. E queria e não queria que fosse ele. Não queria vê-lo, apesar de que sua face era tudo que ela mais queria ter diante de si.

Tudo isso lhe ocorreu, mas Micau já sabia que aquela voz não pertencia a ele. Era mais grave, mais profunda... genuinamente preocupada, mas tinha um quê de hesitação.

- Dante. - ela disse, embora tenha soado mais como Dane.

O que soou engraçado, mesmo para ela. Ou só para ela, já que o rosto do rapaz não exprimia uma gota de humor. Os lábios perfurados e pintados de preto estavam comprimidos em uma linha fina.

Ela parou de rir.

- Borguê dão zériu? - ela forçou a fala.

Por que tão sério?

- Os papéis se inverteram nos últimos dias ? - desde que Pietro sumiu.

Pietro Ivanov pode ir para o inferno.

Micau lançou uma careta desdenhosa na direção de Dante, já apoiando a mão direita na parede, se ajeitando para levantar. Ao invés disso, vomitou mais um pouco.

Mãos grandes e calejadas seguraram seus cabelos desde a nuca. Micau demonstraria sua surpresa se não estivesse de outra forma ocupada; Dante nunca fora exatamente um amigo. Na realidade, Micau não sabia nem o que Dante era, de fato. Ele simplesmente sempre estava no lugar certo, na hora certa. E muito embora isso a levasse à loucura na maioria das vezes, hoje, ela estava de joelhos (literalmente) agradecendo.

Alguns momentos se passaram em silêncio após a coisa toda. Enquanto isso, a realidade se restabelecia nos ombros de Micau, a noite de repente esfriando e escurecendo, como um teatro depois de as cortinas se fecharem.

Ergueu o olhar sorrateiramente. Novamente, Dante não foi o Dante que ela conhecia. O rapaz lançou-lhe um olhar compassivo.

- Chega?

Micau revirou os olhos, frustrada. Ela não queria pedir ajuda, mas no estado em que estava não conseguia nem levantar. Como se não fosse humilhante o suficiente.

- Dante.

- Sim, adorável donzela?

Os adjetivos profanos que saíram da boca de Micau coloriram a expressão  de Dante, como se o colocassem numa luz pura. Talvez fosse o fato de ele não se importar com a hostilidade.

Mas ele sorria tentadoramente agora, desafiando-a a dispensa-lo. Desgraçado, amaldiçoou, mas retribuiu com um sorriso cortante.

- Seja um cavalheiro, Dante, e me ajude a ir pra casa. - ela pediu, da maneira mais ironicamente doce.

Seriedade cobriu sua feição quando Dante a ergueu em seus braços. O calor que emanava dele fazia Micau querer se aninhar em seu peito, como um Porto Seguro, mas era mais prudente permanecer um pouco distante.

Muitas coisas negativas podiam ser ditas sobre Micau, mas nenhuma delas era referente à sua inteligência. Tudo indicava que Dante era um tipo de pessoa, mas algo dentro de Micau contradizia as evidências. Algo que ela fora ensinada a ouvir.

Então, naquele momento, ela se permitiu relaxar nos braços que a envolviam. Fechou os olhos e não os abriu por algum tempo.

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