Peidanfa - Parte II

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CONTINUAÇÃO DA CARTA DE JÚLIO DOÍPE:



Cada palavra, riso, ou mesmo o respirar de Ademar me deixavam nervoso. Não estava conseguindo me concentrar nas aulas, o ódio me distraía, borbulhava em minhas vísceras. Nem mesmo com Gleissiane eu conseguia falar, ficava mudo, remoendo minha raiva e minhas dores. Com isso a moreninha se isolou mais ainda, ficava quase o tempo inteiro fazendo palavras cruzadas e caça palavras, era viciada nisso.

Algo absurdo ocorreu. Luíza, a menina dos meus sonhos, aquela que fazia comentários precisos, conversava sobre ética, dava conselhos enobrecedores para as amigas, ignorava as brincadeiras tolas de Ademar e ainda por cima era um primor da beleza feminina. Minha princesa, apesar de nunca ter conseguido conversar com ela, apenas trocávamos olhares. Aquela que eu achava ter o maior bom senso do mundo. Esse anjo, meu estímulo para continuar vindo à escola, fez um ato inexplicável.

Lembro que havia acabado de colocar meu estojo sobre a mesinha, ainda faltavam vários alunos na sala, o primeiro sinal não tinha soado. Na porta de entrada a bela surgiu de mãos dadas com Ademar, sorridente. Os dois sentaram-se perto um do outro, trocando cutucões, olhares maliciosos e o pior: pequenos selinhos. As dores surgiram, fulminantes. Tive que me retirar da sala, fui ao banheiro, me tranquei em um box. Enquanto as primeiras aulas transcorriam fiquei ali gemendo, tentando achar uma posição que aliviasse aquilo. Tentei forçar para o mal sair de minhas entranhas, fazendo pressão no intestino, suplicando por um final feliz. Alguém entrou no banheiro. Segurei meus sons, cheguei a prender a respiração. Ouvi o urinar no box ao lado, depois o som do enxague das mãos, fiquei esperando os passos para a saída e o som da porta se fechando, mas veio um bater seco próximo de mim, me assustando.

"Quem está aí? É você Depressão?"

Uma voz límpida vindo do outro lado da porta, acompanhada de pequenos risos, inconfundível.

"Depressão? Cara, larga de ser triste, vem viver. Larga de ser cuzão. Só porque você é burro pra caralho, o maior bunda mole e mais feio que meu pau, só por isso vai viver assim calado. Supera essa merda."

Não pude conter um gemido.

"Que isso! Tá dando o cu? Seu viadão, safado. É esse o seu problema?"

Ademar iniciou um gargalhar.

"A professora vai falar sobre liberdade de gênero, acho até que você vai poder ter um banheiro pro seu grupinho. O grupo dos viadinhos. Vamos voltar pra aula?"

Senti como se meu interior estivesse em carne viva, como se labaredas de fogo me queimassem de dentro para fora. Ardia como limão em uma ferida exposta. Um novo gemido ecoou no banheiro.

"Caramba! A coisa tá boa por aí, heim! Cara, isso é nojento. Tanta mulher por aí, você viu minha nova gatinha, minha gostosa. Ela sim vai gemer gostoso."

Meu corpo iniciou um convulsionar. Acredito que aquela bateção toda assustou Ademar. Veio então o estrondo, como o som de um rifle sendo disparado.

"Meu irmão! Você tá loco? O que foi isso? Que cheiro horrível."

Um alívio indescritível se instalou em mim. Ouvi Ademar engasgando e tossindo. Eu não senti o cheiro que soltei. Fiquei caído me recuperando enquanto minha vítima arfava como um cavalo. Pensei até que fosse um humor pastelão. Não teve graça quando me recompus e abri a portinhola do box. No chão, pálido, jazia o corpo de Ademar. Ainda pensei que fosse brincadeira, mas a imobilidade completa, nem mesmo um vaivém mínimo no ventre, me fez desesperar. Ajoelhei e tentei sentir a pulsação com as mãos no pescoço dele. O coração parecia não bater. Gritei por ajuda.

O zelador apareceu rápido, já estava vindo conferir o que teria sido aquele provável tiro. Depois dele, professores, enfermeiros. Os paramédicos chegaram em pouco tempo também. No dia seguinte não teve aula. Informaram que o aluno Ademar Vieira se encontrava em estado vegetativo no hospital. O colégio em luto. Nem por um momento alguém cogitou que eu tivesse alguma relação com aquilo. Tudo indicava que o pobre coitado tinha tido um ataque respiratório, ou talvez um infarto, um AVC, e que o som de sua queda brusca havia se dissipado pelo colégio. Tomaram como verdadeira essa hipótese e eu acabei corroborando.

Queria acreditar que eu não tinha culpa, mas uma voz me dizia: "Você matou uma pessoa." "Você transformou o Ademar num vegetal."

Então foi isso que aconteceu. Agora tantos anos depois consigo redigir esse texto me declarando culpado. Vim viver aqui nesse rancho, nessa terra ondulada, onde o frio e a chuva prosperam. Isolado, com a herança de meu falecido pai, tudo para não permitir que aquilo se repita. Convivo com os livros, com a escrita, na minha singela carreira literária. Encontro poucas pessoas, apenas me envolvo com a comunidade rural no imprescindível. As dores não ocorrem sempre, mas tenho medo.

Deixo aqui essa carta, escondida no fundo dessa gaveta. Esperando que um dia alguém encontre e que o caso fique explicado. Não ficarei redimido, estarei sempre devendo aos amigos e parentes de Ademar, mas não tive controle, não soube gerenciar aquele desconhecido fenômeno. Agora partirei, abandonando esse lar. Enviei um aviso para minha mãe, deixando exposta minha partida. Vou em busca de respostas, tudo indica que encontrarei alguém que finalmente saiba me explicar o que ocorreu. Algo que os médicos nunca souberam, talvez porque seja sobrenatural, não sei. Quando conseguir respostas e talvez a cura voltarei para minhas raízes.

Assinado: Júlio Doípe

Continua...

Luz e EscuridãoWhere stories live. Discover now