Prologue

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Louis P.O.V

Não é porque eu tive minha calça preferida coberta de vômito de criança, tropecei na escada de embarque, perdi duzentos euros, confundi minhas malas no check-in e quase morri engasgado com um pedaço de sanduíche de atum maldito que eu estou de mau humor. Afinal, acabo de desembarcar em Doncaster, mais uma vez. Minha terra natal. Faz três anos desde que... fui embora, e parece que nada mudou.

O Robin Hood Doncaster Sheffield parece mais movimentado que o habitual, onde cerca de trinta e dois voos diários decolam destas pistas. Muitos guardas e fuzileiros portando armas e com as feições sérias, mesmo que alguns deles tivessem me cumprimentado de bom grado.

Cidade pequena, pessoas gentis. Foi assim por toda a minha vida. Sempre topando com gentileza e compreensão. “Coitadinho, tão novo” e “a vida é cruel” são frases que cercavam minha mente dia e noite, ditas por pessoas insignificantes com histórias insignificantes que não sabiam nada sobre a vida de verdade, lá fora.

Esse foi um dos motivos que me levaram a me mudar definitivamente para Finningley com Mark e todos os outros, quando completei treze. Enquanto alguns garotos se importavam em jogar videogame e brincar com seus caminhões e azarar suas primeiras paqueras, eu aprendi a atirar com um B12 à queima-roupa. Tive que crescer muito depressa, e penso que fora isso que o instigou a pegar mais leve comigo do que com os outros, e também a me apoiar completamente quando cheguei em seu escritório, em uma manhã, e disse que entraria para o seminário.

Claro que foi um choque e tanto para os outros, mas Mark sempre me defendera, e me deu todas suas economias para que eu comprasse uma passagem até a Filadélfia, e de lá, começasse minha jornada. Sinto que, fazendo isso, ele se redimisse um pouco para com todo seu passado.

Eu tinha dezessete, e abandonei o penúltimo ano da escola.

Ainda não compreendo o motivo que me levou a procurar o seminário, ou a peregrinação até a Basília de San Pietro, meu objetivo final e de tantos outros que buscavam se ajoelhar os pés do túmulo de São Pedro, o discípulo mais fiel do Senhor. E, quando cheguei, finalmente, e senti aquela sensação de paz interior, tive certeza do que queria.

E por isso eu voltei.

Eu poderia ter escolhido qualquer outro país, ou até mesmo Roma, no Vaticano. Mas, por algum motivo, me senti tentado, quase intimado a voltar para cá. Depois de alguns meses juntando dinheiro e contando com a ajuda de alguns bons seminaristas que simpatizaram comigo (ainda acho que foi por causa da minha bunda), comprei uma passagem só de ida, uma viagem de doze horas extremamente cansativa e exaustiva.

Agora finalmente pousamos, e me sinto muito mais aliviado do que quando embarquei, até porque eu estava quase quebrando a saída de emergência e saltando a dois mil pés de altura.

Depois de carimbar minhas malas, me dirigi até o saguão do aeroporto, tumultuado até o inferno, com muitos fotógrafos, paparazzi e repórteres. Será que algum famoso está desembarcando hoje? Se sim, porque raios alguém iria querer vir para esse fim de mundo? Doncaster não tem nenhum atrativo esplêndido, a não ser sua isolação com o mundo atual e consequentemente proporcionando o maior tédio que você já viu.

De qualquer maneira, driblei os seguranças, mostrando meu passaporte e minha passagem carimbada para que me deixassem acessar os bancos de espera. Coloquei as malas em um deles e me joguei no outro, sentindo finalmente o jet lag assolar meu cérebro e o cansaço atingir cada músculo do meu corpo.

Ainda assim, espreguicei e criei coragem para ligar para a segunda melhor pessoa desse mundo que ficaria feliz com a minha chegada, já que a primeira está... hm, digamos que à sete palmos debaixo do chão, mas isso não é algo que eu goste de falar – ou pensar.

Coloquei na discagem rápida e esperei os três toques habituais. Estava quase desistindo – sou um poço de paciência – quando uma voz sonolenta soou do outro lado da linha.

Alô? – a voz era arrastada e provavelmente teve que levantar da cama para atender. Chequei meu relógio preso à bolsa e constatei que além de jet lag, eu estava parcialmente perdido, já que eram apenas seis e meia da manhã e Doncaster nem teria se levantando ainda, considerando mais uma terça-feira normal.

– Hey, dude, tudo isso é preguiça de me atender ou você só é dorminhoco assim mesmo? – provoquei, soltando uma gargalhada em seguida. Seguiu-se dois segundos até que eu tivesse uma resposta.

LOUIS?! – houve um baque alto, e supus que algo ou alguém tivesse ido para o chão. Um momento de bagunça, onde pude distinguir sua voz gritando, chamando por alguém, e tive que segurar o riso ou não me chamariam um táxi, chamariam a ambulância do hospício.

– Calma, não quero ninguém acidentado! – brandei, escutando mais alguns barulhos e tropeções, até que pude ouvir duas respirações ao telefone.

Não acredito que é você, Louis! – quase não acreditei em quem estava falando.

– N-niall? – gaguejei e engasguei, mas não tive mais dúvidas quando ele deu sua típica risada alta de irlandês.

Eu mesmo, Lou-lou. – tive que rir. Cara, como eu senti falta desse loiro oxigenado!

– Desde quando você está na casa do Liam, dude? – perguntei, ouvindo os dois rirem.

Esse idiota aqui chegou ontem, trazendo duas malas e atacando minha geladeira enquanto eu estava no trabalho. – tive que rir dessa. Era bem a cara do Niall mesmo.

– Não sei porque não estou surpreso. – escutei algumas risadas, um baque e Liam exclamando “Hey!”.

Mas por que você ligou? Ficou um ano sem dar notícias, dude. – a repreensão era palpável em sua voz, e engoli em seco, me sentindo meio culpado por isso.

– Eu voltei. – tive que afastar o telefone da orelha diante os berros que ele emitiu. Acho que um deles caiu junto com um copo, porque ouvi estilhaços no chão. Alguns dos repórteres olharam para mim, curiosos, mas logo se focaram na pista de pouso novamente.

O que? Quando? Por quê? Onde você está? – perguntaram tudo de uma vez, e eu fiquei confuso.

– Um de cada vez. – suspirei, sorrindo – Eu acabei de chegar, na verdade.  – o que me lembrou do meu mau humor e das minhas calças que ainda fediam páprica de mamão – Resolvi ligar e avisar vocês. Na verdade era só o Liam, o Niall ficou sabendo de intrometido. – ri e o loiro bufou incrédulo do outro lado.

Quer que a gente vá te buscar? Precisa de um lugar para ficar, talvez?

– Não, tudo bem, já comprei minha passagem de ônibus – verdade – e já tenho um quarto, valeu dudes – okay, agora é meia-verdade. Eu ainda não tinha nem ideia de onde dormiria.

Então tá. Nos vemos quando você chegar? Daqui a pouco preciso ir trabalhar. – disse em tom de desculpas.

– Pode deixar, Liam, assim que eu me estabelecer, vou correndo aí, não se preocupe. – prometi a eles.

Okay, então. Toma cuidado nesse trânsito, hein Louis. – sorri afetado.

– Pode deixar, daddy. – brinquei e ele riu, envergonhado – Até mais, dudes.

Até. – disseram juntos e desligaram.

Ainda estava sorrindo quando a ligação foi encerrada. De todas as pessoas, de quem eu mais senti falta foram esses dois idiotas. Liam é meu amigo desde sempre, e ele encontrou Niall um dia desses, na rua, cuidou dos seus machucados e adotou ele como nosso irmão caçula, antes de me conhecer. Liam tem mais ciúmes dele do que eu, mas, mesmo assim, o protegemos como se fosse um bebê.

Entre nós, eu sou o mais velho, mas Liam é o mais alto, infelizmente, eu tenho a genética ruim. Niall fica entre o meio termo, mas por conta de seu DNA irlandês, consegue passar despercebido e aparentando bem mais – ou bem menos – idade do que realmente tem. Com seus vinte anos, já conseguiu entrar em uma festa de adolescentes do ensino médio e em uma balada GLS sem identidade.

É, eu esqueci de comentar. Niall é bissexual. Sim, bi.

Não tenho nada contra, muito pelo contrário, até simpatizo com os mesmos. Niall já teve alguns namorados e namoradas na época da escola, mas nada muito sério, então ele gosta de ficar com os dois sexos. Quando nos conhecemos, ele confessou a mim que chegou a ter uma queda pelo Liam, mas diz ele que foi coisa passageira, nada demais. Ninguém sabe, a não ser nós dois, e, segundo o loiro, todos teriam um infarto se soubessem que o doce Niall Horan já beijou homens (isso para não comentar outra coisa).

De qualquer maneira, eu terminei com a minha primeira e única namorada há quatro anos, e Liam continua firme e forte com Danielle, que conheceu em um dos cultos que frequentávamos. Eu, particularmente, nunca tive nada contra ela, parece até ser uma boa pessoa, de índole positiva, e, se ele gosta dela, não tenho que opinar.

Estava muito distraído para perceber a presença ao meu lado, mas senti aquele perfume adocicado e meio cítrico, me fazendo virar a cabeça para fitar a pessoa que se sentava. Tenho que dizer que fiquei embasbacado.

Ela era linda. Tinha o cabelo castanho claro, assim como seus olhos grandes e de uma inocência até mesmo charmosa, o rosto bem desenhado, os lábios finos e as maçãs do rosto cheias. Tinha um sorriso tímido, e no colo, uma bolsa de ombro, apenas.

– Olá. – disse, e sua voz era normal, talvez um timbre ou outro mais fina.

– Oi. – estendi minha mão em sua direção – Louis Tomlinson, e você?

– Eleanor Calder. – sorri, sentindo a maciez de sua mão na minha.

– Belo nome. – suas bochechas coraram, e acho que nunca vi nada parecido antes. Sorri e ela retribuiu o gesto – Está indo para onde?

– Doncaster, vim morar com minha tia. – sorri mais ainda. Provavelmente nunca tive tanta sorte na minha vida.

– Que coincidência, eu também estou indo para Doncaster!

– Sério?! – sua animação quase infantil era encantadora.

– Sim! Acabei de chegar de viagem. – indiquei as malas ao meu lado – Você está acompanhada? – perguntei como quem não quer nada.

– Estou esperando um amigo vir me buscar.

– Ah, sim. Bem, se não for muito atrevimento, gostaria de pedir seu número. – sorri torto, e ela corou, sorrindo também – Não me entenda mal, mas é que eu realmente gostei de te conhecer!

– Digo o mesmo, Tomlinson. – riu baixo, e sua risada soou como música para meus ouvidos.

– Pode me chamar de Louis. – ela escreveu alguma coisa em um pedaço de papel rasgado e me entregou, virando o rosto e acenando para alguém longe.

– Bem, Louis, tenho que ir. Espero que tornemos a nos encontrar em Doncaster. – sorriu debochado, um sorriso que não combinava com sua aura angelical, mas não liguei muito. Pegou sua bolsa e levantou, acenando delicadamente.

– É uma cidade pequena! – gritei antes que vê-la sumir, e ela deu uma risadinha.

Sorri para o nada, ainda processando o que acontecera. Nunca fui de ter muita sorte com as garotas, principalmente as bonitas, e, agora, depois que cheguei de viagem, esse não era meu principal objetivo aqui, mas acho que os noviços podem ter encontros.

Uma chamada no telão anunciando as horas me fez acordar de meus devaneios loucos. Meu ônibus chegaria logo, e seria melhor eu esperar no ponto, e poderia comprar alguma coisa na ida. Peguei minhas coisas e me levantei, novamente passando por entre aquela multidão que aguardava no pátio e me dirigindo até uma cafeteria ali perto.

Comprei um café duplo, para me manter acordado, e voltei até o saguão, levando alguns pisões de pé e empurrões. Minha curiosidade falou mais alto, e fui até um dos jornalistas, meio agachado e posicionado com sua câmera.

– Com licença. – ele me olhou – Poderia me dizer o porquê desse alvoroço logo de manhã?

– É que a qualquer momento um avião cheio dos piores assassinos do mundo vai pousar aqui em Doncaster, trazendo os transferidos e os que conseguiram uma condicional. – sua voz rouca disse, excitada – Não ouviu as matérias?

– Sim, acho que ouvi alguma coisa a respeito. – murmurei – Obrigado. – me afastei, olhando de longe o tumulto.

Eu li algo a respeito alguns meses atrás. A Prisão de Segurança Máxima dos Estados Unidos estava mandando de volta os deportados pelos piores crimes já cometidos na história. Assassinatos brutais, estupros, homicídios horrendos, coisas que ninguém é capaz de imaginar. Culpados do mundo inteiro são mandados para uma ilha cercada de pedras e água, que servia para garantir que nenhum deles tentaria escapar, e, se tivessem sorte, voltariam para seu país de origem para uma prisão comum, ou alguns deles, para uma condicional se mostrassem bom comportamento.

Senti minha coluna arrepiar-se. Só de pensar em estar no mesmo lugar que esses homens, já fico de estômago embrulhado. Olhei para o café, agora frio e não mais tão atraente assim. Deixei-o em cima de um balcão qualquer e me preparei para ir embora, quando escutei alguns burburinhos.

Olhei para trás e vi que um novo avião chegava até a pista, e alguma coisa me dizia que era aquele avião que todas essas pessoas esperavam tão ansiosamente. Era de uma cor escura, e sua lataria parecia pesar uma tonelada, o que me fez questionar como aquela máquina conseguia voar.

Pousou, no entanto, suavemente e logo os funcionários levavam uma escadaria para descer os 'passageiros'. Os fuzileiros e policiais que vi antes se posicionaram em filas, prontas para escoltá-los seguramente até seus destinos.

Como minha curiosidade é maior que meu senso de segurança, me vi andando de volta até as cadeiras de plástico e me sentando casualmente nelas, dando-me um bom ângulo da chegada e da descida deles. Segurei minhas malas contra o peito, os olhos correndo rapidamente da porta do avião até o chão, onde os primeiros homens desciam, e meu coração bateu mais rápido com a adrenalina.

Todos usavam o mesmo traje cinza com identificadores na borda, e sapatos brancos com correntes presas aos tornozelos, e a medida que desciam, eram soltas por dois agentes de preto com chaves nas mãos.

Mesmo que aparentassem serem pessoas comuns, seus olhos tinham algo de diferente. Um brilho sem vida, sem esperança, carrancas de pessoas que já perderam tudo e sabiam que não tinham mais nada por que lutar. Surpreendentemente, me peguei sentindo uma espécie de pena dessas pessoas, e suas feições melancólicas e pálidas.

Muitos tinham a barba por fazer e a cabeça careca, com seus trinta, quarenta anos, mas o último passageiro que descia não. Ele era diferente. Muito diferente.

Senti minhas palmas suarem e meu coração disparar mais ainda, enquanto seguia seus movimentos com o olhar. Minha barriga estava agitada e eu sentia que poderia vomitar o que comi há três dias a qualquer momento.

Ele era alto, e tinha um jeito desengonçado. Seu cabelo era encaracolado e estava oleoso, como se não fosse lavado há meses. Usava um traje de cor diferente, enquanto todos usavam cinza, o seu era amarelado, quase bege, e seus sapatos eram botas de couro gastas e quase rasgando na frente. Os braços estavam desnudos, e muitas tatuagens surgiam dos mesmo, ressaltando seus músculos sobre o tecido, e imaginei que tivesse um peitoral definido também.

Por que raios eu estou pensando nisso? Por que estou reparando tanto nele? Ele é só mais uma escória no mundo, um sujo, um maldito que provavelmente assassinou milhares de pessoas a sangue frio e nem deve se arrepender disso.

Mas, mesmo que eu esteja tentando fixar isso em minha mente, meus olhos insistem em segui-lo, sem querer perder um só movimento, grudados nele como uma águia de caça que procura uma vítima.

Além da roupa e da fisionomia, ele tinha algumas características diferentes dos outros que desceram. Sua pele, em vez de pálida, era parcialmente bronzeada, pouco mais que a minha, e seu rosto. Seu rosto era o que mais me prendia atenção, como um cartaz de neon que piscava no escuro, em busca de atenção.

Mesmo com todos os flashes e microfones que pareciam pipocar em busca de algum furo jornalístico para a primeira página, consegui memorizar todos os mínimos detalhes. Tinha a boca rosada e o lábio saliente. As maçãs eram levemente saltadas, e estavam curvadas para cima. Ele estava sorrindo. Um sorriso de escárnio, mas, ao mesmo tempo, consegui distinguir uma centelha de felicidade entre aqueles dentes brancos reluzentes.

Um paredão de pessoas se formou, de modo que tive que levantar para continuar seguindo-o com os olhos. Os policiais iam seguindo-o, ao contrário dos outros, e eu tinha a impressão de que seu rosto era familiar.

Quando passaram pelo pátio, onde eu estava, não sei explicar o porquê. nossos olhos se cruzaram, dentre todas as pessoas. Verde. Aquele verde brilhante e vivo. Sinto que nunca mais vou conseguir esquecer aquelas orbes esmeraldas, que pareciam deslocadas naquele rosto jovem e naquele sorriso frio. Por quê?

Porque, naquele momento em que nossos olhares se cruzaram, e ele me fitou curioso, me penetrando com o olhar, eu senti que tudo fazia sentido novamente. Que todas as coisas voltaram para seu lugar, e, o vazio que me assolava há quatro anos, sumiu, dando lugar à um fogo que queimava cada célula do meu corpo e me preenchia, dando uma sensação que há tempos eu não sentia, e achava que nunca mais voltaria a sentir.

Unholy (Larry Stylinson AU Religious!Louis)Onde as histórias ganham vida. Descobre agora