Mais de uma segunda chance

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Yanda abriu os olhos com um sobressalto.

Lembrou do pai, atirando contra ela com ódio no olhar, retirando sua vida sem pensar duas vezes. Lembrou de seus três irmãos, um morto a muito tempo, e os outros dois mortos devido a ganância de seu pai. Lembrou de Shi, o homem que amava, sacrificando-se pelo irmão.

Lembrou de tudo, mas quando olhou pela janela de seu quarto, o mundo estava sereno.

A chama. Ela prometeu a chama.

Levantando as mãos ela invocou seu fogo. Ainda não era incolor, mas sua chama não era mais tão vermelha, era de um amarelo muito claro e, quase no centro, começava a se tornar azul. Azul. Uma cor de chama que somente sua mãe tinha atingido antes. Nem mesmo o rei, seu pai, tinha conseguido aquele feito.

Tinha trabalho a fazer. Precisava saber qual era o momento exato em que se encontrava.

Vestiu-se rapidamente, preferindo roupas pretas ao invés de vermelhas, e, antes de sair do quarto, viu uma camareira entrar.

- Senhorita – sussurrou la, fazendo uma reverência.

- Onde está meu irmão mais novo, Xinjue?

A mulher piscou, confusa. Como a princesa poderia ter esquecido?

- Foi para a tribo do gelo há dois dias, senhora. Recebemos a notícia de que foi... assassinado. Seu pai preparou as tropas, vão partir em seguida.

O coração de Yanda apertou. Não poderia salvar Xinjue, mas talvez seu irmão mais velho Shuo tivesse salvação. Só precisava garantir que não se intrometesse na vida da princesa Lan Shang e a tribo das sereias.

Ela saiu, desviando da camareira sem nenhuma palavra. Seu chicote estava no pulso, e suas espadas curvadas firmemente presas na cintura. Saiu do castelo rapidamente, passando pelos exércitos que esperavam silencioso, procurando seu pai e seu irmão Shuo.

Avistou Shuo em poucos minutos, parado olhando para o exército com satisfação. Ela sempre gostara de guerra, tinha muito do pai em sua personalidade.

- Irmão – chamou Yanda – onde está nosso pai?

Ele olhou para ela, sorrindo com desdém, mas logo parou. Estreitou os olhos, analisando a irmão. Yanda fingiu não perceber, mas ficou feliz de vê-lo vivo. Queria abraça-lo como não faziam desde que eram crianças, mas sabia que jamais poderia fazer aquilo ali.

- O que aconteceu com você? – Perguntou ele.

Ela piscou, um pouco atordoada. Acaso estava diferente?

- Nada. Onde está nosso pai?

Ele não gostou da resposta, mas mesmo assim assentiu.

- Partiu primeiro, eu fiquei para esperar você, ele nos prefere juntos.

Sim, ele costumava se preocupar. Sempre mandava os filhos lutarem juntos, para darem suporte um para o outro, ao mesmo tempo que falava que somente herdaria o trono aquele que derrotasse todos os irmãos. Yanda sabia que, em pouco tempo, o ódio consumiria todo o possível afeto que o pai nutria pelos filhos, mas Shuo não tinha como saber.

- Irmão... essa guerra não é uma boa ideia. – Disse ela, com firmeza.

- O que diz? - ele estava surpreso.

- Não deveríamos lutar, nosso povo vai morrer. Vivemos em paz até agora, não deveríamos quebrar o acordo.

- Eles mataram nosso irmão, Yanda – Respondeu Shuo, com ódio. – Acaso está com medo de lutar?

- Não. Não mataram nosso irmão.

A raiva dele diminuiu, ele parou para escutar o que ela ia dizer.

- Não foram eles. Foi nosso pai. Mandou nosso irmão para lá para ter um pretexto. A missão dele era enfraquecer a defesa da tribo do gelo. Porém ele não sabia que ia morrer, essa parte do plano nosso pai jamais mencionou.

Seu irmão olhou para ela, chocado.

- Como sabe disso? Tem ideia do que está dizendo?

Ela olhou nos olhos dele profundamente. Olhos castanhos, como os da mãe dele. Havia mais em Shuo do que crueldade, e Yanda sabia disso pelas vezes em que ele salvara sua vida, quando deveria estar tentando mata-la.

Confiaria nele e tentaria salvar sua alma.

- A chama me contou. – Disse, por fim.

- A chama? A chama fala? – Ele pareceu chocado por um momento, mas olhou mais profundamente para ela. Shuo sabia que ela não estava mentindo – Por que não avisou antes?

- Soube essa noite... – encurtou ela, embora não fosse exatamente aquilo – queria ter impedido isso, mas não pude. Mas posso impedir outras mortes.

- Você sabe mais do que está me contando, posso sentir.

- Sim, é verdade. – Admitiu ela – Mas precisa confiar em mim. Hoje e, principalmente, nos dias que virão.

- O que você planeja fazer? – Perguntou ele e, vendo que ela hesitou, emendou – Sei que planeja alguma coisa.

- Sim. Mas precisa confiar em mim. Você... – sua voz falhou – confiará em mim?

Ele suspirou e olhou para o exército abaixo de si, depois novamente para ela e depois para a própria espada. Por fim, tomou sua decisão:

- Sim, confiarei. Vá e faça o que tem que fazer e... – ele colocou a mão no ombro dela, num gesto que entre eles era considerado extremamente raro e carinhoso – obrigado por confiar em mim.

Ela não sorriu, mas ficou emocionada. Ficou feliz por ter confiado no irmão, foi a decisão correta. Talvez era isso que sempre faltara entre eles, conversas francas e sem pretensão.

- Shuo, fique a salvo. – Disse ela, curvando a cabeça em respeito. – Eu... volto logo.

Ele assentiu e virou-se, dando a deixa para ela partir.

- Se não voltar, logo vou até você, irmã.

E ela partiu.

Ice Fantasy - recallWhere stories live. Discover now