— Ai! Você está tentando se vingar com seu jeito desastrado de ser, por ter tropeçado em minha perna e agora joga sua mala no meu pé de propósito! — Talvez eu tenha visto errado, mas, era um sorriso nascendo no canto de sua boca?

— Acidentes acontecem... – lançou as mãos para o alto, como quem se defende de uma falsa acusação.

Nem para se desculpar.

— Isso realmente doeu... – falei indignado, tentando impulsioná-la a um pedido de desculpas, mas ela continuou parada me olhando como que se nada tivesse acontecido. — Olha... – no mesmo instante em que eu ia falar para ela algumas verdades sobre boa educação, a porta do elevador abriu e ela saiu arrastando a mala de rodinhas. Olhei para o painel e sim, hospedados no mesmo hotel e no mesmo andar. Segui-a pelo corredor em busca do meu quarto.

Ela olhou para trás e revirou os olhos.

Não a respondi. De fato, aquilo tudo era arranjado demais e parecia uma verdadeira perseguição. De repente, ela parou abruptamente e voltou-se para mim.

— Essas últimas horas tem sido uma loucura pra mim. Ter conhecido você no voo para cá e agora estarmos no mesmo hotel e no mesmo andar... – ela passou a mão pelo cabelo, o que me fez acompanhar o movimento.

— E agora também, somos vizinhos de apartamento – tentei sorrir, mas a situação estava realmente esquisita.

— Enfim, tenha um bom descanso, e obrigada pela conversa durante o voo, isso me ajudou... sabe, a esquecer que estava longe do chão... e... segura...

Não sei se pelo cansaço ou o que, mas foi ficando sem voz e seus olhos encontraram os meus. Ficamos ali, parados de frente um para o outro, como se o tempo tivesse estagnado naquele momento. Para evitar o ímpeto de abraçá-la, passei o cartão pela fechadura.

— Ok, eu que agradeço pelo pé inchado que você me rendeu depois de mais de dezoito horas viajando... – tentei soar irônico. Ela sorriu gentilmente e colocou a mão em meu ombro.

— Sinto muito, realmente não foi por querer... – não consegui mais me localizar. Essa mulher realmente mexeu com meu psicológico! Peguei a mão dela que estava em meu ombro e a puxei em minha direção, a abraçando forte, e o cheiro do seu cabelo me embriagou.

Sussurrei em seu ouvido:

— Espero que você encontre o que está procurando. – E com a mesma velocidade com que a abracei, a soltei e entrei para o meu quarto.

Agora, após uma hora deitado nessa cama analisando os fatos, cheguei a uma conclusão: eu devo ter algum distúrbio psicológico. Talvez Beatriz tenha razão, sou algum tipo de psicopata, que não sabe como se comportar diante de uma bela mulher. Vamos combinar que é algo aceitável depois de anos viajando e convivendo na maior parte do tempo com crianças e pessoas que eu não conseguia ver com outros olhos a não ser como irmãos, como se fossem de sangue mesmo.

Levantei e caminhei em direção a varanda, abri as portas de vidro e uma leve brisa dançou ao meu redor. Debrucei-me sobre a proteção da sacada e fiquei observando a cidade e suas luzes. Olhei na direção do céu e as pequenas estrelas tremeluziam. Suspirei e, junto com o suspiro, uma enxurrada de novos pensamentos invadiram a minha mente, encobrindo o rosto de Beatriz. Desabei na cadeira mais próxima e as lágrimas simplesmente apareceram, como velhas companheiras noturnas. O verdadeiro motivo que me trouxe até essa cidade... ninguém consegue fugir de seus problemas por muito tempo.

Voltei novamente meus olhos para o céu e as estrelas estavam embaçadas pelas minhas lágrimas.

— Deus, o Senhor ainda pode me ouvir?

O silêncio pairou sobre mim, estreitei os olhos e procurei por algum sinal pelo céu que pudesse me dar esperança, mas o único som que ouvi foi o de uma sirene longe dali, abafada pelos prédios no entorno do hotel. Num sobressalto, levantei e peguei o cartão do apartamento e fui para os elevadores.

Andar pelas ruas escuras daquela cidade, uma velha conhecida, pareceu ser uma boa opção. Ignorando o fato de ter dormido menos de uma hora no último dia, segui a passos lentos pela calçada com as mãos no bolso. O silêncio nos persegue quando procuramos respostas por questões não resolvidas. Olhei para o relógio, e logo as ruas estariam movimentadas.

Caminhei sem rumo, ou pensei estar sem rumo, quando na verdade, meus passos inconscientemente me guiaram a uma pequena praça, para o mesmo velho banco que presenciou outros momentos da minha vida.

O som de um sorriso conhecido ressoou em minha mente. As dúvidas se fundiram com o sorriso, e a tristeza me brindou com uma enxurrada de outras lembranças. Cerrei o punho e bati com força no banco e algo se mexeu embaixo. Olhei curioso e ali estava uma figura peculiar.

Um pequeno felino amarelo. O gato espreguiçou-se e saiu lentamente do seu esconderijo, ronronou entre minhas pernas e sem que eu o convidasse, pulou para o meu lado, com olhos suplicantes implorou por um carinho. Cocei sua orelha ao que ele demonstrou uma visível satisfação.

— Se o hotel aceitasse hóspedes peludos, te levaria comigo... mas infelizmente, desculpa falar, você não vai ser nem um pouco bem-vindo.

Eu realmente estou falando com um gato, a prova final da minha loucura!

A bola de pelos amarelos com suas passadas elegantes, desceu aos meus pés e, pode parecer loucura total, mas ele me convidava para segui-lo.

Francamente! Preciso repor essas horas de sono perdidas antes que isso vire crônico.

Levantei do banco quando do outro lado da rua alguém gritou:

— Chuvisco! Aí está você! – E soltou uma gargalhada muito animada para um início de manhã. Olhei para o céu e o alvorecer iniciava seu espetáculo de belas cores. Percebi que Chuvisco era o gato, pois na hora em que o homem gargalhou, o animal atravessou a rua correndo na direção dele. O homem de cabelos grisalhos afagou a cabeça do pequeno animal e quando eu já estava de costas, seguindo em direção ao hotel, pude ouvi-lo dizer:

— A gente sempre encontra o que procura, quando procura com vontade e muitas vezes encontra algo além do esperado.


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