Um trem que poucos conhecem

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Naquele final de tarde o trem sem nome carregava apenas uma passageira.

- Hei, mas como assim esse trem não tem nome? - perguntou a única passageira ao maquinista logo antes de subir no trem.

- Simplesmente não tendo nome... - respondeu o simpático maquinista de modo despreocupado com um sorriso afável no rosto.

- Hmm - resmungou a moça com ar de contrariada. - Mas onde ele pára?

- Bom aí depende... - o maquinista continuava com a mesma expressão. Era um homem gordinho de barba e cabelos grisalhos, embora o rosto parece ser de uma pessoa que tivesse ainda trinta e poucos ou quarenta anos.

- Mas depende do que? - perguntou a moça que já estava impaciente com a falta de objetividade do maquinista.

- Ah, depende de onde os passageiros irão querer descer - o maquinista continuava agradável, e agora espantava uma mosca do seu macacão amarelo queimado que estava bastante sujo, assim como a boina de mesma cor. - Não tem muitos passageiros aqui, sabe? Então quando tem passageiros o trem sai, quando não tem não sai... E quando quiser descer é só pedir que eu paro o trem e você desce.

- Certo... - respondeu uma jovem magra e pálida que tinha os cabelos muito escuros e lisos. Ela tinha uma franja desajeitada na testa e atrás tinha um rabo-de-cavalo que ia até a altura dos ombros. Os olhos eram azuis marinho. - Então, quantos passageiros há hoje? - perguntou incerta.

- Um.

- Um além de mim ou apenas eu? - perguntou com impaciência.

- Apenas você - respondeu satisfeito o maquinista.

A mulher fez uma expressão de impaciência mais uma vez. "Por que não disse logo que era só eu?", pensou consigo e depois subiu no trem.

 A mulher de calças escuras, camisa branca e um casaquinho de couro preto achou uma cabine que a agradou e sentou-se quase se jogando em um dos bancos velhos do trem, no qual também jogou sua pesada mochila cinza escuro ao lado.

O estofamento dos bancos tinha alguns rasgões, além de marcas de encardido. As partes de madeira do trem tinham algumas lascas faltando, além de cupins e algumas pontas soltas levantadas. Os vidros também estavam encardidos e as partes do trem que eram de ferro estavam bastante enferrujadas. De fato era um trem bastante antigo, talvez até tenha ficado sem uso por um bom tempo.

Mas a verdade é que aquele trem antigo traziam boas lembranças à Kirin, que era uma pessoa muito nostálgica.  Lembrava dos passeios que tinha com o seu falecido avô, em que o velho sempre tinha alguma história sua para contar sobre os lugares por onde passavam.

Kirin suspirou ao lembrar daquilo, parece que aquele sentimento lhe trouxe um certo conforto no peito, diante da situação angustiante de onde agora saía. Ela estava fugindo, indo embora daquele país, ali ela não suportaria mais ficar. E nem poderia mesmo.

Na verdade, o seu país havia se dividido em dois após uma terrível guerra civil. A rixa entre as diferenças políticas tornou-se insuportável, então o país se dividiu. Porém, tanto um lado quanto o outro eram de uma inflexibilidade insuportável. Embora ambos tivessem qualidades e defeitos, aos cidadãos não era dada a liberdade de gostar de coisas de lá e de cá, era oito ou oitenta, ou seja, para pegar uma coisa de um dos pacotes, era necessário levar o pacote inteiro. Um dos lados era mais conservador e "politicamente correto", do outro, havia uma libertinagem sob o disfarce de liberdade, ou seja, lei das ruas, cada um por si. Em ambos os lados, não se podia falar nada que concordasse com o outro, sob a pena de ser enviado para o lado contrário. Porém, quando você chegava a qualquer um deles enviado pelo outro lado, a pressão social era insuportável, então muitos se suicidavam, ou outros, melhor informados, fugiam, como era o caso de Kirin.

O caso de Kirin na verdade era um pouco diferente. Órfã, ela fora criada pelo avô até os 9 anos de idade, quando este veio a falecer. Depois disso, sua infância foi muito conturbada. Adotada por criminosos, foi treinada para matar desde os 10 anos de idade. Com 18 anos era uma das assassinas de aluguel mais perigosas do submundo. Mas ela era inteligente e, apesar de aparentar frieza, tinha um bom coração. Assim que conseguiu, matou quem tinha de matar para se ver livre desse universo terrível, mudou de identidade, de cidade e abandonou essa vida. Não sem carregar nas costas dor e culpa, mas disfarçava isso muito bem com sua personalidade forte, fria e individualista.

Quando houve a divisão do país, Kirin tinha 26 anos e fazia 3 que havia deixado a vida criminosa. Na hora de escolher que lado ficar, não podia arriscar ficar do lado conservador, ironicamente, a maioria dos seus ex-clientes eram desse lado. Descobririam o seu passado facilmente, e se você não fosse um milionário influente ou tivesse uma forte influência política, com um passado como o dela, você poderia até mesmo ser condenado à morte. Então ela foi para o lado que falava de liberdade, mas o que tinha na verdade era libertinagem para aqueles com mais poder político também. Era um caos, todo dia presenciava cenas horríveis como estupro, roubos, brigas injustas e toda variedade de barbáries capazes de serem produzidas por gente sem escrúpulos.

Um dia, para salvar uma garota de ser estuprada, teve de matar um homem. O seu passado foi investigado e quando descobriram que além de cometer o terrível crime de defender uma pessoa indefesa ela havia trabalhado para o lado contrário por anos, eles imediatamente a extraditaram para o lado conservador do país.

Mas Kirin era esperta, ela sabia o que iria acontecer a ela, então fugiu. Ouviu falar desse trem. Alguns chamavam de trem da liberdade, outros de trem dos fugitivos, mas chegando ali descobriu que o trem não tinha nome.

Eram poucas as pessoas que sabiam desse trem. Só sabia desse trem quem lembrava que existia uma terceira, quarta, quinta ou quantas opções fossem para ser gente além das opções que lhes eram apresentadas por sua pátria.

Então Kirin achou o tal trem e foi, sem saber muito bem onde iria parar. Ela pensava que "gente" era a pior coisa que existia para lidar, ela sempre dizia que o certo seria que existissem apenas bichos.

Ao passar por um campo verde e vasto, com capim e um córrego onde alguns animais como cavalos e bois bebiam e se banhavam, finalizado por um arvoredo de sombra fechada onde abaixo ficava um casebre muito humilde e aconchegante, Kirin não teve dúvidas, era ali que desceria.

Ela foi caminhando até onde estava o maquinista. Quando chegou a ele, antes mesmo de abrir a boca, o simpático e sujo trabalhador do trem perguntou:

- É aqui que você vai ficar?

Com apenas um leve sorriso no rosto, numa expressão bem mais agradável que a do primeiro contato com aquele homem, Kirin apenas concordou com a cabeça.

Com alguma dificuldade, o trem foi parando aos poucos. Não que estivesse em alta velocidade, mas os freios não eram dos melhores, e o maquinista, sabendo disso, ia dosando a frenagem para não piorar ainda mais a situação do trem.

Ao descer Kirin perguntou ao maquinista:

- Qual é o valor?

- Ah, o que a sua consciência mandar... - respondeu o maquinista de forma despreocupada e amigável.

Kirin começou a remexer na pesada mochila em busca por dinheiro. Pela primeira vez o maquinista demonstrou uma expressão um pouco mais tensa ao ver a quantidade de armas de fogo e facas que a passageira carregava em sua bagagem.

 - Aqui, toma - falou Kirin estendendo ao maquinista uma quantia que era no mínimo três vezes maior do que normalmente se pagava pelo transporte ferroviário no lugar de onde viera.

O maquinista agradeceu muito e continuou sua viagem em busca de mais passageiros que quisessem encontrar outro lugar para ficar.

Kirin ia descendo aquele campo e pensando em seu avô:

"Se não me engano, foi aqui que vovô falou uma vez que trabalhou como capataz. Será que ainda tem alguém naquela casa que se lembre dele?"

A moça partiu para um lugar onde poderia ser o que quisesse e não o que os outros queriam que ela fosse.

Um trem que poucos conhecemWhere stories live. Discover now