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"Dos cantos perdidos há aqueles que fazem tantos caminhos diversos, como as razões pelas quais mudamos. Mas esses tipos de canções, falam direto aos motivos da alma, que mesmo sem poder explicar à ciência, podem ser sentidos."



Podia-se ver, assim que o portão se abrisse, e atravessassem as primeiras moitas, que o verde das plantas, tão assanhadas e caprichosas, subiam pelas paredes e emolduravam num capricho não planejado, as janelas e a sacada.

Eu havia dito a Linitry que os dias de outono tem sóis muito mais amarelos que os de verão. Ao que ela me dizia, desdenhando de minha observação, que de nada importa os dias serem tão amarelos e arderem os olhos, se não aqueciam nossa pele, e que bela sim, era a noite, de mistério e brilho como ela era. E eu lhe respondia que mais vale o que aquece o coração, do que o que doíra a pele ou deslumbra os olhos. Ela, ah, Linitry, ria-se e me respondia: "por isso és tão pálido... e seco feito lagartixa".

Nossa lembrança mais antiga era de termos sido colocados numa caixa, ter ouvido o barulho do mar, de uma tempestade, e depois flutuado até aquela terra, então, nunca soubemos como seriam os outros como nós.

Pois bem... Nessa época, como disse, éramos ainda crianças. Tínhamos não mais que cento e oitenta anos e, há não mais que dez, aquela família erguera ali o casarão. Ali, onde antes fora passagem de muitos humanos, de pele tão escura como de minha amiga, que confabulavam como seria a vida num tal de "quilombo" e nós, criaturas pequeninas de orelhas pontudas, os víamos seguir e nunca voltar.

A verdade é que, aos olhos das sete crianças dos Andrade, os únicos seres capazes de nos ver, Linitry era uma boneca, tinha a pele e os olhos negros lindos feito a noite, enquanto eu, pobre criatura mirrada, tinha os olhos tão pequenos e claros, que mais pareciam besouros, e a pele pálida feito essa folha em que escrevo, dava-me o aspecto de um fantasma.

Estávamos bastante eufóricos naquela manhã, quando voltei a falar do sol, pois as crianças dos Andrade haviam nos dito que seus primos, que moravam muito longe, viriam os visitar e assim todos teríamos um dia de aventura com eles. Preciso dizer que os filhos dos Andrade eram crianças saudáveis, de bochechas fofas e pele negra, pois o Patriarca da família, ignorando os comentários do povo, casou-se com a filha de uma escrava alforriada. O que para nós, não fazia sentido, pois os Andrade e seus empregados eram os únicos humanos que tínhamos contato, desde aqueles que seguiam para o tal quilombo, e toda a história da espécie nos era desconhecida.

Qual não foi meu susto quando vi que todos os primos e tios eram tão brancos quanto eu e o senhor Andrade? Mal pude aproveitar as peripécias com as crianças, de tão disperso que ficara com aquela visão, pois de acordo com os que havíamos visto, acreditávamos que o patriarca era o único, de todos os humanos, a ter nascido desprovido de cor, como eu.

Foi que, na hora do lanche, eu e Linitry nos escondemos atrás de uma das colunas que sustentavam a parte superior da casa aguardando algumas guloseimas que as crianças nos trariam.

Enquanto esperávamos ouvimos a conversa do senhor Andrade e seu irmão sobre homens brancos e negros, sobre as mudanças que vinham nascendo, e que a princesa fora obrigada a criar uma lei, para dizer que os que eram como a senhora Andrade e também Linitry, deveriam ser livres. Mas que ainda havia muito ódio, e os de pele escura sofriam por terem sido escravos por séculos. Meus olhos assustados se cruzaram com os de minha amiga, marejados pelo que tínhamos ouvido, sobre os castigos, as marcas de chicotadas e correntes.

Nossa visão voltou-se para as sete crianças negras, brincando com seus primos brancos e rindo, enquanto decidiam quem nos traria as guloseimas. O sol que vinha sobre nós e sobre a casa, agora era do entardecer. De súbito, Linitry me abraçou e sussurrou ao meu ouvido as palavras mais doces que já haviam saído de sua boca. "O sol pálido é tão belo quanto a noite. Esse tempo todo eu menti", emocionado a abracei de volta e sua voz pareceu sorrir entre as lágrimas que lhe escorriam. "E eu nunca mais digo que pareces com uma lagartixa."

Filhas de Hécate - Contos da magia perdida no tempoOnde as histórias ganham vida. Descobre agora