Parte I

39 2 0
                                    

O conto é minúsculo e foi dividido em duas partes para facilitar a leitura.



        Não sei se sou muito boa em fingir ou se ela realmente não se importa com o que eu sinto, mas a cada vez que olho para minha mãe e percebo que ela não está me olhando ou me avaliando para confirmar se estou bem, minha tristeza aumenta. Ela - ao contrário de todos as outras pessoas - ainda não me disse que a culpa não foi minha e a razão por não tê-lo feito é óbvia, ela me considera culpada pelo que aconteceu. Aparentemente minha própria mãe acredita que eu tive o intuito de assassinar meu pai e minha irmã naquele carro; ela acredita que eu optei por jogar o carro contra aquela ponte, para que então fosse a única que conseguisse sair viva de lá. Ela não poderia estar mais enganada. Primeiro de tudo, não era eu a pessoa que estava dirigindo o veiculo - ela saberia disso se tivesse perguntado a mim, ao invés de acreditar no que um policial qualquer afirmou. Segundo, eu tentei tirar o volante das mãos do meu pai bêbado, assim como minha irmã o fez, mas nenhuma de nós obteve sucesso, afinal ele era muito mais forte do que ambas. Terceiro, a porta dos dois ficou presa entre a mureta de ferro da ponte, por isso eles não conseguiram sair de lá. Quarto, eu queria ter morrido com eles.

        - Vou sair por alguns minutos - me levanto da cadeira na qual estive sentada durante horas (separando os pertences mais valiosos da minha irmã e pai), retiro o casaco do cabideiro ao lado da porta, enfio meus braços nas mangas e as mãos nos bolsos, enquanto ando para fora da casa.

        Teria sido muito melhor para todos se eu estivesse morta e minha irmã ou meu pai tivessem sobrevivido. Quem sabe assim minha mãe se importaria com algo, além da dor que ela está sentindo, já que pensa que é a única que está sentindo algo. Ela não estava lá naquela noite e não sabe o quão doloroso é ter sido a última pessoa a ver seus rostos; como é ser acusada por uma coisa que não fiz; como foi ter que narrar tudo a polícia minutos depois do ocorrido, enquanto ela me olhava com algo próximo a desprezo. Ela não sabe de nada, mas diz que sabe de tudo.

        Retiro as mãos dos bolsos, apenas para puxar a touca do casaco sobre meus cabelos, depois volto a empurrá-las no calor do traje.

        Observo as coisas ao meu redor e tudo que vejo é uma vasta camada de neve cobrindo tudo (como se fosse uma segunda pele) e fazendo tudo ficar branco e gelado. Um triste sorriso toma conta dos meus lábios. Meu pai costumava ser assim; conseguia se adequar a todos os lugares, mas sempre deixava as coisas as quais tocara mais frias do que se encontravam anteriormente (sim, eu o amava - ainda amo -, mas isso não quer dizer que ele era um ser humano perfeito). Minha mãe parece não se lembrar disso, já que na véspera estava gritando comigo, dizendo que ele era a pessoa mais doce que existia e que eu era a mais amarga que ela conhece, afinal não derramei uma lágrima sequer dois dias atrás na cerimônia fúnebre deles. É claro que é isso que ela pensa, pois não passou no meu quarto naquela noite para que pudesse ver as lágrimas caindo com rapidez dos meus olhos, nem conseguiu ouvir os soluços que quase partiram meu peito ao meio, já que minha face estava enterrada sobre o macio travesseiro de penas no qual costumo repousar minha cabeça. Contudo, incrivelmente, eu não estou com raiva dela por tudo que me disse ou que fez - ou deixou de fazer. Busco entender como ela está se sentindo e até mesmo tentei me pôr em seu lugar. Cheguei a conclusão de que ela não sabe sofrer em silêncio - e aceitar de uma vez que eles não vão voltar, pois por pior que seja nossa realidade agora, é sem eles -, ela tem que culpar alguém por tudo que aconteceu e a culpa recaiu sobre mim, porque as provas apontaram que eu guiava o automóvel. Atualmente não sinto raiva dela, mas também não a estou amando extremamente.

        Chego até uma praça, passo a barra do casaco sobre o banco para tirar um pouco da neve que nele residia e me sento sobre a madeira.

        Minha cabeça está tão cheia de tantas coisas e eu gostaria apenas que tudo parasse. Quero parar de sentir a dor que estou sentindo; quero que meu coração pare de pulsar e que meus pulmões não encontrem mais ar. Eu quero parar de respirar, porque não mereço mais viver, não quero mais.

        Passo a mão sobre o bolso da minha calça e paro quando sinto a saliência do frasco de remédios que peguei no quarto dos meus pais - agora apenas da minha mãe.

        Tudo acabará em breve.

VidaWhere stories live. Discover now