Diferente

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Anos atrás estudei com um cara de nome Cristiano. Tinha os cabelos encaracolados, parecidos com os dos anjos naquelas gravuras e esculturas da estética barroca, tipo Aleijadinho. Olhos azuis, estatura mediana, espinhas pelo rosto, mas só algumas, nada comparado com um colega nosso que tinha até nas costas.

Não era o melhor aluno da sala, pelo contrário, precisava sempre de ajuda para estudar e das famosas 'colas' nas provas para obter a média exigida. Lembro-me certa vez em que conseguiu fazer leitura dos lábios de sua namorada durante certa prova de português, acho que a matéria era sobre orações subordinadas, que sei lá por quê a gente estudava aquilo.

Sua referência musical era meio hard-core: ouvia Metallica, Nirvana, Rage Against the Machine, Angra, Ramones e por aí vai. Até onde lembro, foi em dois anos consecutivos a um grande show que teve na cidade, reunindo grandes bandas, nacionais e internacionais. Integrava inclusive uma banda que tocava rock 'pauleira', mas apenas uma vez tocou uma das suas músicas pra turma ouvir.

Gostava de fazer brincadeiras, de rir e de fazer rir. Durante as aulas, vez ou outra, escrevia numa folha de papel algo parecido com um jornal de colunas sociais, falando abobrinhas dos tipos que havia na sala. Por exemplo, o 'Cabeção' sendo protagonista do filme 'A Caixa D'água', ou aquele com a maior 'napa' estrelando 'Cyrano de Bergerac', entre outras. Até desenhou a lápis os rostos de todo mundo da sala, ressaltando as peculiaridades faciais de cada um.

Mas o que mais chamava a atenção nele era seu modo de pensar. Não sei explicar isso de forma clara, mas é como se ele enxergasse a vida com outros olhos, de uma perspectiva completamente obliqua às das outras pessoas. E demonstrava bem isso durante as aulas de redação, em especial quando escreveu um texto, na minha opinião muito melhor que os meus 'nota 10' dados pela professora.

Achava-o melhor porque falava de um tema, que mesmo parecendo banal, era pertinente a todas as pessoas que estão ainda desenvolvendo sua personalidade. Chamava-se, se me lembro, 'A máquina de ler pensamentos', e discorria sobre um rapaz que, querendo saber o que seus amigos e colegas achavam dele, principalmente a garota de quem ele gostava, resolveu criar a tal máquina. E acabou se matando, após construi-la, ao descobrir a falsidade de quem ele julgava serem seus amigos, e de descobrir que a garota também agia igual aos outros.

Trágico. Assim eram seus finais de texto, alguém sempre morria. Mas a morte daquele rapaz é que fazia pensar em como era problemática sua relação com os outros, e como se sentia incapaz de mudar a si mesmo para se adaptar e mesmo mudar a relação das outras pessoas para com ele. A morte foi apenas uma fuga, uma fuga da realidade que o descobria indefeso e despreparado.

E nesses dias, refletindo no meu passado, encontrei-me em minhas lembranças com aquele texto, e nem lembrei dos meus, do que se tratavam, sobre o que falavam. Lembrei do texto do Cristiano, e vi que eu podia ter sido aquele rapaz, porque queria saber o que os outros pensavam de mim, e tinha medo de descobrir a verdade.

Talvez tivesse sido meu destino, mas o fato é que nem sempre a história é linear, e numa das curvas que ela faz acabei me encontrando a mim mesmo, e nessa conversa interior descobri verdades e mentiras, fatos e lendas desvendados que me deram a direção, se não mais certa, melhor do que aquela que estava a seguir.

Do Cristiano nada mais soube, mudou-se para o interior com a esposa há alguns anos. Mas espero que não tenha perdido o gosto de escrever, de colocar no papel aquilo que pensava ou que o incomodava. Espero, um dia, voltar a ler algo dele.

23/03 a 29/07/2000 – revisado nov/2016

ContosWhere stories live. Discover now