Devolva meu voto

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Vermelho

Quando a décima barra supinada terminou, seus músculos pulsavam rígidos como os de um rapaz mais jovem. Com certeza estavam maiores que os dele próprio na juventude, já que só depois dos quarenta chegou ao porte atlético que fazia com que ficasse bem no vídeo. Aos cinquenta, com dentes clareados e cabelo moderno, era mais buscado na internet por suas fotos que discursos.

Terminada a série de exercícios matinais, entrou no banho e retirou a máscara facial que havia passado a noite em seu rosto. Sabonete esfoliante com perfume de orquídea, xampu em francês e toalha fio egípcio para secar os pelos ralos e acinzentados de seu peito branco.

Lauro Alvarez só tocava no celular depois de cumprir esses trinta minutos obrigatórios. Nos passos seguintes, descia para o primeiro andar de sua casa funcional em Brasília conferindo na tela as manchetes dos principais sites jornalísticos do país e as mensagens dos contatos prioritários. Os grupos ficavam para depois. A quantidade de notificações que haviam chegado desta vez era ainda maior do que a de costume e, ao ver que também as chamadas telefônicas não atendidas se amontoavam, ele suspeitou que a campanha tinha acordado em mais uma reviravolta.

Nenhum empregado estava na cozinha. Nenhum suco estava na mesa. Nenhuma frigideira com ovos cheirava no fogo. Só via Rafael, encostado com seu pijama estampado de coqueiros na bancada da pia. O silêncio alfinetou que era melhor ter olhado o celular antes. Ao descruzar os braços, ele revelou o controle remoto e apertou o botão para que a TV da cozinha exibisse o vídeo que já passava de um milhão de visualizações.

A festa do partido no Recife teve uma falha de segurança: alguém conseguiu, com uma câmera, registrar o momento em que Lauro e um homem seminu roçavam suas cuecas em um divã branco. Com uma camisa aberta, ele arrastava seu tórax pelos músculos ainda maiores do amante e beijava sua boca e seu pescoço como se sugasse deles algum líquido doce. A cena continuava cada vez mais molhada, até o jovem projetar o pescoço para trás e fechar os olhos com o boquete experiente daquele que detinha o apoio da maioria para se tornar Primeiro Ministro do Brasil pelo Partido da Ordem Liberal. No último ato, um segundo jovem se aproxima e beija a boca do rapaz escultural que se contorcia e, nesse momento, a pessoa que filmava teve a consciência de que tinha o bastante.

– Isso está em um site pornográfico. Versões mais suaves estão no jornal da manhã – disse Rafael, e desligou a TV.

– Amor, eu... 

 –Seus votos – cortou o companheiro, respirou e continuou – Quatro mil eleitores retiraram seus votos

– O que?

– Você não vai ser primeiro ministro se perder o mandato de deputado.

Lauro pôs a mão no peito e tentou pegar ar.

– Rafa, isso não teve...

– Você gosta de pau. Eu sei.

– Não fala assim. Eu...

Quando tentou explicar alguma coisa, Rafael baixou a cabeça e ligou a tela do celular para atualizar o feed.

– Dez mil. E ainda são sete da manhã. Nesse ritmo, você perde o mandato antes do almoço.


Laranja

O carro que levou Lauro e Rafael para o Setor Empresarial Norte, na sede do partido, estava sombrio e calado como um rabecão. Na torre espelhada que Oscar Niemeyer amaldiçoaria, estavam os caciques do POL no Senado e na Câmara, e membros de outras legendas que haviam costurado a aliança conservadora que governava o Brasil há cinco mandatos. O candidato homossexual assumido e monogâmico era uma aposta arriscada, mas, ao mesmo tempo, silenciava as recentes manifestações pelo retorno do Casamento Homoafetivo e contra a Lei das Quatro Paredes. Lauro tinha o discurso afinado de que sua vida pessoal acontecia em seu lar, não se considerava apto a criar um filho "sem mãe" e mantinha o mantra das últimas décadas de que violência era um problema que atingia a todos, e o preconceito, apenas uma loucura de alguns.

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⏰ Last updated: Nov 20, 2016 ⏰

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Devolva meu votoWhere stories live. Discover now