Capítulo Único

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Acho que passamos nossa vida inteira, ou boa parte dela sem entender o que é liberdade. Achamos que somos livres, mas sempre estamos nos prendendo a alguma coisa, mesmo que inconscientemente.

Passei anos fazendo o que me mandavam fazer. Na infância, só podia brincar com os brinquedos que me davam e na hora que deixavam. Só podia ter os amigos que me permitissem.

Por ser de uma família muito rica, eu era uma criança super protegida! Sei que meus pais não faziam por mal, eles queriam me proteger dos males do mundo. Mal sabiam eles que um dos maiores da minha vida foi justamente que eles escolheram para passar o resto da vida ao meu lado. Tão protegida que nem quem amar pude escolher.

Admito que até nos dávamos bem no início, mas achei que com ele poderia ser quem nunca pude ser com meus pais. Mas me enganei. Ele chegava a ser pior! Por nosso casamento ser parte de um acordo e união entre nossas famílias, por eu ser a mulher e ele o homem, eu estava atrelada a ele, como um bichinho de estimação.

Via-me em muitos momentos, infeliz. Apenas sorria e me fazia de feliz na frente dos outros e dele também. Por dentro só queria gritar, correr com todo o meu fôlego e estar o mais distante dalí possível. Daqueles lugares, daquelas pessoas. Cada dia mais eu me afastava de mim mesma. Se é que em algum dia realmente existiu um eu.

Meus únicos momentos felizes são nos quais estava "sozinha", sempre andando com seguranças, não é tão simples assim. Passeio de compras, um simples cinema. Por isso que minhas horas favoritas são as do meu banho e quando fico em meu quarto lendo. Estou plenamente sozinha!

Só que eles são poucos se comparados aos momentos que visto minha máscara de felicidade e rio por fora e choro por dentro. Alimento diários e mais diários numa tentativa de suprir toda essa solidão. Até tratamento em psicólogo eu faço, em segredo total, porque para a família toda eu pareço bem de saúde. Até me ajuda bastante, tão bom ter alguém para desabafar e tentar me mostrar algum caminho a seguir, mesmo que seja difícil enxergar alguma luz no fim do túnel. A pessoa acabou virando minha amiga. A minha segunda, a outra é uma amiga de infância, com a qual também secreto muitas coisas. Felizmente, a vida dela se tornou melhor que a minha quando crescemos.

Dizem que é muito bom ter dinheiro, que se pode ter tudo o que se sonha. Sinceramente, quem fala isso não sabe nada do que está dizendo. Faria tudo para não ter dinheiro algum e ser livre. Poder sair quando quisesse sem ter que dizer a ninguém onde vou e sem alguém para me seguir. Apenas eu comigo mesma! Poder sair para a casa das amigas e passar a noite lá, jogando conversa fora, sem se preocupar com pais ou marido ligando e te procurando.

Eu só esperava o dia em que surtaria completamente e situação ficasse irreversível. E aconteceu!

Voltei de uma festa com meu marido, eu já estava muio cansada, tanto fisicamente quanto da encenação, e não consegui esconder minha insatisfação. Ele sempre foi muito agressivo, mas nunca chegou a pôr a mão em mim, mas ele sempre me rebaixava o máximo que podia para me deixar mal. Nosso sentimento de ódio um pelo outro era recíproco. Quando ele viu a minha cara, já gritou:

-Qual a razão desta cara? Acabamos de voltar de uma festa, você se divertiu tanto.

Eu estava no meu limite e aquilo foi a gota que fez tudo transbordar. Por sorte não havia ninguém para testemunhar aquilo. Então, vomitei tudo mesmo:

- Não estava me divertindo. Eu nunca me divirto nessas festas. Odeio essa gente e toda essa encenação de casal e esposa feliz que tenho que fazer para eles. Nunca pude ter nada do que quero. Minha opinião nunca vale. Sinto apenas como uma marionete ou até uma decoração. Não tenho voz, nem presença. Sou só um acessório. Sempre fui, nunca vivi. Toda a minha vida foi uma mentira e você é a pior podridão dela.

- Como é que é, sua puta? - ele me deu um tapa, com os olhos fervendo de ódio - Você sempre teve tudo. Eu sempre te dei tudo o que quer. Você é uma ingrata!

- Nunca quis nada daquilo. Eu não sou fútil o suficiente de aguentar um cara como você apenas por você me dar joias, bolsas, roupas. Eu sei muito bem o que você apronta com a sua secretária. Ela é seu verdadeiro amor e não eu. E nem me importo com isso, quero mais que você e ela se fodam.

Então ele descarregou tudo em mim, de forma física. Xingamentos e socos, chutes, até que eu cai no chão sem forças por conta de tanto que apanhei. Ele ofegava por conta do esforço e eu chorava por causa da dor.

- Tá feliz, sua puta?! Aprenda qual é o seu lugar! Eu nunca pedi para me casar com você, isso foi arranjado pelos nossos pais e eu te odeio tanto por ter acabado com minha vida.

- Também te odeio. E eu agradeço tanto por nunca ter me deitado com você, imagino se tivéssemos um filho, como não seria? Cansei de ser um mero objeto em disputa nas mãos de vocês.

- Tá cansadinha da sua vida de rica é? Tem que agradecer. Podia ter te largado na nossa lua-de-mel.

- Mais para lua-de-nojo né? - rebati e tomei mais um soco

- Cansei de você. Vou dormir! Se vire para sair dai. Espero não vê-la de manhã quando acordar.

E foi então que a minha medida mais extrema e a única que podia dar um jeito na minha vida finalmente entrou em ação. Nos meses anteriores, fiz uma identidade nova com outro nome para mim, abri uma conta para mim com o nome novo e injetei muito dinheiro nela, um telefone nome com outro número, separei algumas roupas em uma mala pequena e dinheiro para comprar passagens para o interior. O único jeito seria fugir e largar tudo isto para trás. Reiniciar do zero. Para mim era o que daria mesmo um jeito.

Assim que me recuperei, subi com dificuldade para o meu quarto. Tomei um banho, dei um jeito de esconder os machucados, troquei de roupa, peguei a mala pequena. Por ser madrugada, os seguranças estavam apenas em locais estratégicos e eu fui por eles para sair da casa. Ninguém me notara, afinal, sempre fora invisível, só era notada quando estava junto de meu marido ou meus pais. Eu era só a concubina e herdeira, nada além disso.

Peguei o primeiro táxi que vi e fui em direção a rodoviária. Chegando lá, comprei a passagem e logo entrei no ônibus e nem sabia onde ia parar. Sei que foram horas e mais horas de viagem e logo desci num lugar que era mesmo o fim do mundo e ele era perfeito por ser assim.

Primeiro procurei alguma pousada ou hotel por lá e logo encontrei.

Nas horas que se seguiram, liguei a TV e percebi que minha família me procurava e eles faziam todo aquele teatro ridículo de gente preocupada com a parente quando internamente sei que me queriam morta e seria assim mesmo. Não iam me encontrar, não ia aparecer de novo na vida deles.

Arranquei uma doença do meu peito quando eu soltei tudo o que estava dentro de mim para o meu falso marido. E especialmente nesta noite, seu olhar me refletiu, como nunca vi acontecer. Pela primeira vez eu me senti alguém, me senti existir.

Deixei mesmo tudo para trás, em busca de algo que nunca tive na minha vida e naquelas poucas horas distante deles eu já sentia: Liberdade.

LiberdadeOnde as histórias ganham vida. Descobre agora