Olhos de fogo

60 9 10
                                    

Sinto um cheiro forte de sopa adentrando em meu nariz, me fazendo ter fome.
Retiro o fino lençol que cobre meu corpo. Percebo que não fez grande diferença ter me coberto, esse lençol não esquenta nada.
Me sento na cama e cerro os olhos em busca de uma melhor visualização do ambiente, pois está tudo extremamente escuro, mesmo existindo alguns feixes de luz que entram no quarto pelas pequenas brechas que existem nas telhas velhas e quebradas que cobrem a minha casa.
Minha mãe ainda não trocou as telhas depois da chuva de flechas do ano passado.
A chuva de flechas ocorre anualmente quando Liebe, o rei de Nier, escolhe pares indefinidos de pessoas por ano para se apaixonarem, embora ninguém saiba como realmente ele realiza esse feito, se por poderes próprios ou por algum tipo de encanto ou objeto mágico.
Não é revelado quem são os casais escolhidos pelo rei. Apenas na hora que começa a chover as flechas. Se você for atingido por uma e logo em seguida sentir algo diferente por alguém que talvez você nem conheça, ou até nunca tenha visto, bom, você já sabe.
É obrigatório participar da chuva de flechas. Caso contrário, você recebe uma punição, que vai de amputar um braço até ter que arrancar um olho, embora seja raro punições assim, geralmente você perde apenas um dedo.
O encanto da flecha duram exatas 3 semanas. Tempo suficiente para o casal se apaixonar de verdade ou se separarem quando o encanto acabar.
Nossos vizinhos se casaram assim, depois de acabar o encanto da flecha, eles continuaram apaixonados um pelo outro. Uma vez, quando vieram aqui em casa para um almoço de domingo, eles falaram que depois do fim do encanto, a paixão virou algo mais natural e menos forçado, totalmente ao contrário de quando estavam encantados.
Decido me levantar, me apoio na cômoda que fica no caminho entre a cama e a porta, não confio totalmente em minhas pernas no momento, sempre que eu acordo elas ficam meio bambas. Não seria exatamente legal cair agora, ainda mais nesse escuro. Não sei o que pode ter no chão.
Solto minhas mãos da cômoda e dou um pequeno impulso, estendo os braços e sinto a porta nas palmas de minhas duas mãos. Tento me agarrar em algo, mas a porta é plana, sinto que estou caindo, mas num milésimo de segundo consigo me agarrar na maçaneta, me impedindo de cair.
Depois de me recompor, giro-a, assim, abrindo a porta e iluminando o quarto com a luz que vem de fora. Mas o que vejo no corredor não me agrada muito.
Existe sopa por todos os lados. No chão, na parede e até no teto.
Não consigo pensar no que pode ter acontecido. Apenas penso no prejuízo que minha mãe terá. Ela vende sopa na feira que fica no centro da cidade. Sem sopa, sem vendas. Sem vendas, sem dinheiro, e falta de dinheiro leva a fome.
Sinto que minhas pernas estão mais bambas ainda, pelo susto que levei.
Seguro mais forte ainda na maçaneta.
Depois de sentir que minhas pernas se firmaram por completo no chão e que já posso seguir caminho, solto a maçaneta e vou em direção ao corredor encharcado do liquido grosso e com aparência pouco apetitosa, agora que está cheio de sujeira.
Escorregando, caindo algumas vezes e ficando todo melado de sopa, chego na cozinha.
Está vazia. Giro minha cabeça rapidamente para todos os lados. Minha mãe não está aqui.
Deve estar no seu quarto. Penso. Não poderia estar mais enganado. Chego no quarto e ele está mais vazio que meu estômago no momento.
Ela não está na cozinha. Em nenhum dos quartos. Ou deve estar na sala, ou no banheiro.
Sigo caminho até a sala, mas não a encontro. Depois vou até o banheiro e a situação fica na mesma.
É madrugada. Ela não sai esse horário.
Começo a pensar na sopa espalhada por todo o corredor. Depois minha cabeça viaja para o estranho e talvez nem tão grave desaparecimento da minha mãe. Ou talvez seja grave?
A sopa espalhada. Minha mãe sumida. Só agora as coisas parecem se organizar com clareza em minha mente. Algo sério aconteceu.
Entro em desespero. Corro em direção a sala da minha casa, onde fica a porta de entrada/saída e a abro assim que toco na maçaneta.
Tudo que vejo é o espaço vazio da minha pequena vila, iluminado apenas pela fraca luz dos postes que estão em estado precário.
- Não! Não! - Grito. Eu quero a minha mãe, eu preciso dela.
E então num piscar de olhos eu estou em minha cama novamente. Ainda estou ofegante, mas um alívio toma conta de mim.
- Foi só um sonho. - Confirmo para mim mesmo. - Foi só um sonho. - repito.
Me sento na cama. Não estou coberto por nenhum lençol. O ambiente dessa vez está mais claro, iluminado por uma vela que está em um pires em cima da cômoda.
Fico em pé e cambaleando vou em direção a cômoda. Me apoio nela até sentir que minhas pernas estão em condição de andar normalmente.
Me dirijo até a porta sem muito esforço. Quando a abro a sensação de alívio em mim aumenta. O corredor se encontra limpo, do mesmo jeito que estava quando eu fui dormir. Sem sopa, sem prejuízo, sem pesadelo.
Sinto que meus lábios estão extremamente secos, passo a língua neles, porém foi em vão, minha língua está tão ressecada quanto.
Esfrego minha mão direita em meus olhos para retirar algumas sujeiras que estavam acumuladas em meus cílios. Sigo caminho até a cozinha.
A cozinha está mais clara que meu quarto. Existem duas velas no cômodo, postas calculadamente perto da geladeira, já que a luz embutida do aparelho não funciona a um bom tempo.
Me aproximo da geladeira e estendo minhas mãos, puxando a alça e abrindo o aparelho. Dentro dela se encontra uma caixa de ovos que tem espaço para 12, mas apenas 7 dos espaços estão ocupados. Também possui uma garrafa de um litro cheia de água, a enchi hoje na fonte da vila.
E não há mais nada além disso. Quer dizer, há sim. Na parte do congelador há um pote com água. Uma tentativa falha da minha mãe de fazer gelo. A energia em toda a vila é muito fraca, a geladeira funciona com praticamente a metade de sua potência total.
Pego a garrafa com as duas mãos e percebo que ela não mudou muito de temperatura desde que a segurei pela última vez.
Vou em direção a pia, agora segurando a garrafa apenas com uma mão. Com a outra pego o copo, e dou uma batidinha na garrafa com o braço, abrindo a tampa. Coloco a água no copo.
Bebo dois terços da água do copo normalmente. O outro terço foco exclusivamente em molhar meus lábios que gritavam por algum líquido há um tempo.
Ouço passos atrás de mim e me viro assustado.
- Ah, mãe. Que susto. - Digo, revirando os olhos. Minha mãe ri pelo nariz e se aproxima de mim com os braços abertos. Ela me abraça e eu retribuo o gesto, me aconchegando em seus braços quentes que expulsam de meu corpo todo o frio dessa madrugada solitária.
- Mãe, posso dormir com você hoje? - Pergunto, mesmo já sabendo a resposta.
- Filho, você sabe..
- Já entendi. - Me solto do abraço. - Enfim, já vou pro meu quarto. - Ela me puxa pelo braço quando me afasto, mas eu me solto e sigo caminho.
Eu acho que minha mãe devia superar isso. Ninguém teve culpa do aconteceu. Ela deveria seguir em frente, esquecer isso. Mas não, ela prefere continuar com esse... Trauma.
Depois de fechar a porta do quarto eu me jogo na cama. Me sinto engolido pelo colchão, e assim apago.
Uma luz intensa invade meus olhos. Os abro com um imenso sacrifício e aviso uma silhueta em pé na frente da porta.
- Oi. - Digo, desanimado. Depois de ontem, perdi totalmente a paciência de conversar com minha mãe. Isso sempre acontece quando algum de nós dois toca naquele assunto.
O assunto proibido, falando de um modo mais dramático.
- Oi, filho. - Ela estende para mim uma bandeja que até então eu não tinha visto, nela há algumas comidas. Segundo meus olhos, que não estão tão confiáveis no momento por motivos óbvios, há um pão com ovos mexidos despejado ao seu lado em um prato. Um cacho de uvas e um copo d'água. - Trouxe isso aqui pra você.
Balanço a cabeça em concordância e aponto a cômoda com a mão. Ela parece surpresa, talvez havia pensado que eu iria esquecer o que ocorreu ontem e iria agradece-la durante horas pelo café da manhã.
Mas não, eu não esqueci. Ela não vai me tapear com um simples café da manhã.
- Pode colocar aí. - Ela coloca a bandeja na cômoda e leva o pires com a vela já apagada e desgastada consigo. Mas antes de fechar a porta, parece lembrar de algo.
- Uma amiga minha virá almoçar conosco hoje. Espero que a trate bem. - Ah, então foi por isso que ela trouxe esse café da manha para mim? Isso é tipo um acordo. Ela fez e trouxe meu café da manhã em troca de eu tratar bem a visita. Me pergunto também onde ela conheceu essa tal amiga, mas isso não m importa muito.
Ela se retira do quarto e eu não estou com a menor vontade de comer. Nem de levantar.
Começo a me sentir um pouco mal, depois a coisa vai piorando. Estou com uma dor de cabeça terrível e minha mãe já m deu dois comprimidos e alguns chás. Nada adiantou.
- Você tem que dormir para ver se quando acordar a dor já tem passado. - Minha mãe fala de forma simples. Eu não estou com um pingo de sono no momento, preguiça sim, mas sono não. - Se não conseguir, terá que tomar um pouco de sonífero.
Penso no que pode acontecer se eu tomar um pouco de sonífero. Talvez eu durma tanto que entre em algum tipo de coma ou viaje para outra dimensão. Talvez eu morra. Talvez eu fique sonâmbulo, ou talvez até não faça efeito.
- Pode ser. - Falo. Depois de alguns minutos minha mãe chega com um copo com água em um tom rosado. Bebo todo o líquido e sinto o meu corpo pesar, até que não consigo mais suportar e desabo de vez na cama.
Estou numa piscina. Uma piscina de sopa. Há um grande telão a cima de mim, e nele passa um vídeo de eu pegando escondido panelas e mais panelas de sopa escondido e jogando dentro dessa piscina. Prejuízo. Prejuízo. Prejuízo.
- Você só irá causar prejuízos. - Uma mulher de aparentemente 30 anos, com o cabelo claramente tingido de vermelho e com um nariz enorme aparece do meu lado. - E mortes. Mesmo que sem querer. - Uma risada maléfica escapa de sua boca.
Sinto algo me puxando pra debaixo da sopa. O líquido groso entrando em minhas narinas e eu sem conseguir respirar. Abro meus olhos e não vejo nada, eles apenas ardem. Tudo isso é muito agonizante para mim.
Então em um piscar de olhos estou novamente em minha cama.
Escuto risadas vindo da cozinha e imagino que a amiga da minha mãe já tenha chegado. Minha cabeça já não dói mais. Decido ir para cozinha fazer companhia a minha mãe.
Levanto. Me apoio na cômoda até sentir minhas pernas firmes. Pego um pão e o abro com o dedo mesmo, coloco ovo dentro dele, dou uma mordida, bebo um gole d'agua e depois sigo meu caminho ainda comendo o pão.
Chego na cozinha e uma mulher ruiva está sentada na cadeira de costas para a porta e de frente para a cadeira onde minha mãe está sentada.
- Filho. - Minha mãe chama a atenção quando me vê e a sua amiga vira para me olhar.
O pão que seguro cai da minha mão. Minhas pernas perdem a habilidade de ficar sem tremer e os pelos de todo o meu corpo se arrepiam. Porque essa é a mulher do sonho.

Abram Seus Guarda-chuvas - HIATUSWhere stories live. Discover now