Episódio 3 | Como contar?

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Sem coragem para os enfrentar, naquela noite pedi ao meu pai para me ausentar da mesa mais cedo. O meu pai era uma pessoa rígida no que diz respeito à hora do jantar. Como durante o dia estavamos sempre cada um para o seu lado, devido aos vários afazeres que cada um tinha, ao jantar ele fazia sempre questão de estarmos todos sentados à mesa, de televisão desligada, telemóveis afastados e usufruirmos ao máximo da refeição em família. Aquele era o momento para estarmos todos juntos e para contarmos as novidades. E havia sempre algo novo para contar. Quem vê de longe a minha família, pode até achar que aqueles nossos jantares eram super aborrecidos, pois tínhamos que estar ali cerca de uma hora, sem nenhum contacto do exterior, mas não! Aqueles até eram momentos divertidos. Momentos em que os meus pais contavam histórias do trabalho, ou comentávamos uma noticia interessante que tínhamos ouvido durante o dia, em que o meu irmão André contava as coisas novas que tinha aprendido no curso de Design e eu... Bem! Eu na verdade não partilhava muita coisa com eles. Por norma falava sempre muito pouco mas divertia-me com tudo aquilo que eles contavam. Aquele era o melhor momento de família que nós tínhamos durante todo o dia. E os meus pais adoravam preservar esses momentos ao máximo, pois eles já sabiam que mais cedo ou mais tarde eles iam terminar. O meu irmão, agora que tinha arranjado uma namorada, mais cedo ou mais tarde iria era querer passar o tempo com ela e eu... Eu não fazia a mínima ideia de como iria ser o meu futuro a partir do momento em que eu lhes contasse a verdade. E talvez essa era também uma das principais razões pelo qual eu ainda não tinha contado nada. Tinha receio de perder esses momentos em família. Momentos em que o meu pai obrigava-nos a ficar sentados à mesa até ao final do jantar. Mas naquela noite, quando lhe pedi licença para levantar, quando todos ainda tinham o prato quase todo cheio, o meu pai olhou para mim e até deu permissão para eu me levantar. A minha mãe contestou. Disse que eu devia comer, que não podia dormir de barriga vazia, mas o meu pai continuou na sua. Deu-me autorização para sair da mesa e eu, aproveitando a boa vontade do meu pai, perguntei logo se podia ir à casa da Diana. A minha mãe voltou a contestar. Disse que era tarde, era hora do jantar e não era hora de ir bater à porta dos vizinhos, mas eu insisti. Disse-lhes que tinha que ir entregar um livro que ela estava a precisar e sem que eu estivesse à espera, o meu pai deu-me também autorização para ir até à casa dela. Naquele momento senti que algo estranho se passava com o meu pai. Sem saber porque ele estava a abdicar do seu momento precioso em família, para deixar-me eu ir ter com a minha melhor amiga. Mas nem quis pensar muito nesse assunto. O meu principal objetivo naquele momento era afastar-me. Afastar-me antes que eles conseguissem ler escrito na minha testa, aquilo que eu tanto queria contar-lhes, mas não tinha coragem.

Ao contrário da minha família que não prescindia dos jantares todos juntos, a família da Diana comportava-se de maneira diferente. Ela era filha de pais separados e enquanto a mãe jantava sozinha na cozinha a ver televisão, ela e o irmão jantavam cada um nos seus quartos. E sempre que ela era convidada a ir jantar na minha casa, achava tudo muito estranho, pois não estava habituada a sentar-se na mesa para jantar. Mas no que toca à Diana, tudo era estranho. Eu e ela já nos conhecíamos há muito tempo. Desde o tempo em que os seus pais se separaram e a mãe dela alugou uma casa no meu prédio, mesmo por cima da minha casa. Na altura tínhamos ambos 8 anos e de imediato ficamos amigos. E apesar de sermos muito diferentes um do outro, eu e ela conseguimos preservar uma amizade de longa data. Somos os melhores amigos, mas... ela é estranha! Ela é mesmo estranha! Não tem nada haver comigo e por isso, muitas sãos as pessoas que acham estranho a nossa amizade. Enquanto que eu sou o todo certinho, o todo bem comportado, o ingénuo, o inocente, a Diana é talvez a personificação do Diabo. Desde muito cedo que veste-se só de preto, usa maquilhagem escura, fuma e não é só uns simples cigarros, já teve vários namorados e virgem é coisa que ela não é. Ou seja, ela é completamente o inverso de mim. Mas talvez por isso é que sempre nos demos tão bem. Eu sei dos seus segredos e ela sabe dos meus. Ou melhor! Há certos segredos que ela não sabe. Há certas coisas que nem para ela eu tenho coragem de contar. Curiosamente são as mesmas coisas que eu não consigo contar aos meus pais. E porquê? Nem eu sei porquê! Simplesmente não consigo! E o curioso nisso tudo, é que há uns tempos atrás ela contou-me que chegou a ter um caso com uma rapariga lá da escola. E a coisa só não foi mesmo para a frente porque ela percebeu que gostava mesmo muito de rapazes. Mas segundo ela, nunca chegou a arrepender-se dessa experiência lésbica. Eu confesso que fiquei pasmado quando ela me contou essa história. Confesso também que naquele momento eu quis contar-lhe a minha verdade, mas eu sou fraco. Eu não tenho a força que ela tem.

EU SOU GAYWhere stories live. Discover now