Episódio 3 | Como contar?

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Como é que eu lhes vou contar? Já há tanto tempo que ando com essa questão na minha cabeça, mas não há forma de eu conseguir uma resposta para ela. Todos os dias quando acordo, depois de uma noite muito mal dormida em que tentei sempre arranjar uma solução para o meu problema, eu digo a mim mesmo: de hoje não passa! Hoje vou contar-lhes. Hoje vou deixar a mentira de lado e vou passar a dizer só a verdade. Mas depois as horas passam e quando dou por mim já é novamente noite e eu não cheguei a contar. Não sei como contar. Não sei como começar a conversa, não sei que palavras irei dizer e principalmente, não sei como é que eles irão reagir. E acho que é esse o meu maior problema. Acho que só ainda não lhes contei tudo, porque tenho muito medo da reação deles. Sei que estamos em pleno século XXI mas infelizmente ainda se ouvem histórias de pais que expulsam os filhos de casa, apenas porque os filhos quiseram deixar a mentira de lado. E eu também quero deixar a mentira de lado. Quero finalmente deixar para trás a pesada mascara que carrego todos os dias e ser finalmente eu, mas... Como é que eu lhes vou contar? Como é que eles vão reagir? Será que se eu contar, eu continuarei a ser o mesmo filho de sempre? Continuarei a ser o mesmo irmão de sempre? Meu Deus! Tenho tantas questões, tantas dúvidas na minha cabeça, tantos medos, tantos segredos que, não sei o que fazer.

Hoje tenho 17 anos. Ou melhor! Acho que posso já dizer que sou um jovem adulto, pois daqui a três dias vou já fazer 18 anos. Já vivi algum tempo e muito desse tempo eu vivi com essas minhas dúvidas na minha cabeça. Acho que sem exagero, a primeira vez que eu percebi que era diferente, eu tinha apenas cinco anos. Meu Deus! Era tão novo e já naquela altura eu sabia. Estava confuso, pensei que seria apenas uma fase, mas não! Confuso eu continuo e as incertezas também permanecem. Mas de uma coisa eu já tenho a certeza, aquilo pelo qual eu estou a passar não é uma fase. Não é tipo aqueles tempos em que eu era doido pelos desenhos animados Pokemon e hoje eu já nem os suporto. Eu sei o que sou e não há forma de alterar isso. Sei que sou diferente. Sou igual a tantos outros mas quando eu contar, serei diferente aos olhos dos meus pais, do meu irmão e eu tenho medo. Muito medo!

Há uns dias atrás eu estive mesmo para contar. Respirei fundo várias vezes e tentei de alguma forma ganhar coragem para lhes dizer. Era noite e estávamos os quatro sentados à mesa a jantar. Naquela noite, a minha mãe tinha feito um prato que tanto eu como o meu irmão adorávamos: hambúrguer com batatas fritas e um ovo estralado. E ao contrário do meu irmão que comia e lambuzava-se todo, eu não conseguia comer. Podia até dizer que tinha fome, que estava de estômago vazio, mas eu não conseguia. Na verdade, sentia-me era cheio. Cheio de medo! E eu batalhei muito para que em vez de cheio de medo, eu sentisse-me era cheio de coragem, mas a coisa estava difícil.

Eles falavam entre si mas eu nem conseguia prestar atenção ao que diziam. Estava tão distraído nos meus pensamentos que foi difícil acordar para a vida e perceber que em dado momento, a minha mãe falava diretamente para mim. Questionava-me se eu estava bem. Tive vontade de dizer-lhe que não, não estava nada bem, mas nada disse. E ela insistiu. Perguntou várias vezes se eu estava bem e eu mais uma vez tive que lhe mentir. Disse que sim. Que estava tudo bem, mas ela não ficou convencida. Naquele momento, já todos estavam de olhos postos em mim e o meu irmão André, brincalhão como sempre, começou logo a dizer que eu andava na lua. Na lua eu não estava, mas podia estar perto disso, pois apesar de estar tão próximo da minha família, eu não tinha prestado atenção a nada do que eles tinham andado a dizer durante o jantar.

O meu irmão abusado, ao ver que eu não comia, começou logo a roubar-me as batatas do prato, mas a minha mãe tratou logo de lhe dar uma reprimida. Mas não adiantou de nada, pois ao ver que eu não reagi à atitude do meu irmão, o André voltou a meter o seu garfo no meu prato para levar mais umas quantas batatas. A minha mãe achou estranho a minha falta de atitude e sem demoras, levou a sua mão à minha cabeça para ver se eu tinha febre e mais uma vez questionou se eu estava bem. Eu tentei, juro que tentei abrir a boca para lhes contar, mas como é que eu havia de dizer?! Não sei! Naquele momento senti que podia até engolir um dicionário inteiro, que continuava na mesma sem ter palavras para lhes falar. Limitei-me apenas a dizer mais uma vez que estava tudo bem. Mas não estava! Por dentro eu sentia-me péssimo por continuar com aquela mentira.

EU SOU GAYWhere stories live. Discover now