Prólogo, ou, Primeiro Conto

Start from the beginning
                                    

Não tem! Isso foi com a catota. Imagina com tua vida se deixares que eu penetre em ti. Cuidado. Cuidado com o tempo, o tempo despendido fora deste livro. Sou ciumento. Meu ciúme alimenta minha curiosidade, meu afã de te desmascarar. Qualquer pessoa é passível do descontrole insano. Basta um breve momento, uma fúria, uma vergonha. Posso te apanhar no desânimo, aquele sentimento que serve de desculpa para tudo. Posso te apanhar no frenesi da paixão... Cuidado. Se passares tempo demais me lendo posso te proteger de mim. Mas não garanto nada sobre ti mesmo. Quem vai te proteger de ti?

O tempo, carrasco dos grandes e poderosos e libertador dos pequenos e miseráveis, teima em querer se assenhorear de mim. Mas eu o dobro. Ra-ra-rá! "O tempo é relativo!" É sim, e como é. E sai fora com a física... Podes ficar preso num sonho, ou no Limbo. Ou no próprio sono. Ou nas tuas lembranças amargas. Quem pode contar o tempo dentro de uma camisa de força?

Depois dessas ameaças amigáveis, volto à catota. Catota... eu poderia ter contado a vida dos pastores dos dinossauros e dos pilotos das espaçonaves que descobrirão a vida em Alfa do Centauro. Poderia contar a história da vassoura, dos fios de cabelo, e até da barata estourada. Afinal, tudo está conectado. Mas conto histórias simples. Eventos banais. O que vale é o que importa. E o que importa é relativo. Mais que o tempo.

Mas não sei como abrir este livro de contos provocantes, insatisfatórios, sem começar com algo básico, com um alicerce firme. Por isso, escolhi começar pela catota. Uma boa história tem que ter um mínimo de catota. Se não tiver, é clichê. História medida, de receita, feita para vender. Passo a passo do manual. Eu perdi o manual faz tempo. Estava todo escarrado com o muco espesso esverdeado de minha sinusite, de qualquer jeito.

Bem, acho que estou me dispersando do meu objetivo. Façamos uma atividade motivadora, para relembrarmos do nosso propósito e entrarmos em foco. Berremos desesperadamente, com prazer: "Viva a catota!"

Um, dois, três:

"Viva a catota!"

Isso. Muito bem.

Esse é o espírito da coisa! Vamos lá. Nesta altura deves estar arrependido de não ter parado lá em cima, não é? Vou me esforçar mais doravante. Vou contar a história dele e verás como eu tenho razão. (E como nesta história tem catota).

Ele estava deitado no sofá da sala a pensar coisas efêmeras. Vulgo "viajando". E neste lazer randômico e infrutífero, confiando na complacência da vida, retira uma catota. Crente que ninguém está olhando. Rá! Mas eu vi. Ele faz como qualquer outro e dá o final peteleco nela.

Sua mãe também viu. Cansada de ver aquele monturo de hormônios e estorvo que é um filho na adolescência, o encoraja a ir gastar suas energias:

– Meu filho, você não vai para a festa não?

Ele foi para uma festa. Às 00:00. Uma hora mágica. Não? Zero-zero dois pontos zero-zero. É incrível de se pensar neste momento que o tempo parou. Nada age e nada é consequente. Ninguém fere e ninguém é ferido. Zero segundos, zero tudo. É a hora mais tarde do dia. O apogeu da noite. Mas são os menores números! Números nulos.

A fila para entrar na festa é curta à meia noite. Um bêbado cai, esbarra em seus joelhos. Ele desvia, tem dó, mas desvia. Vê ele se espatifar no chão. A dó aumenta. Sente-se culpado por não ajudar. Porque não ajudou mesmo, e seguiu em frente.

Em pouco tempo ele encontra seus conhecidos e executa o ritual de olhar para todos os rostos da festa. Toma suas bebidas, traça suas metas. No subconsciente, é claro, mas as traça.

Chove na noite. Passa arrastada para ele. Todos saem dos jardins. Aglomeram-se. Não há relâmpagos nem trovões. Só a chuva branca. Incolor no escuro. "Onde estavam as estrelas?" Ele se perguntou. Não viu a Lua.

Estiou. Esqueceu suas metas e saiu a pé, sem carro, sem dinheiro. Um jovem comum, uma noite comum, uma rua comum. Sem chuva. Ainda sem estrelas.

A rua era tão irrelevante que nem nome tinha. Sério mesmo. Acho que era algo do tipo "Rua B", ou "Rua em Projeto". O que de incomum aconteceu foi um flato lhe escapar, e justamente sem querer, bastante ruidoso. Envergonhado, olhou para os dois extremos da rua mal iluminada. Tranquilizou-se por se ver só. Então, seguro que estava novamente só, o nojentinho leva o dedo à narina e faz o que? Isso mesmo. Arranca mais uma catota.

Um carro cinzento como a lua, com os faróis ligados em máxima potência contra seus olhos aparece. Sua barriga gela. Seu coração dispara. Livra-se da catota. Já é medular.

Ele olha para o carro vindo rapidamente. O medo de morrer lhe invade.

Mas ele vê uma esfera. Julgando estar louco, olha em volta para verificar que seu mundo continua normal. Sim, tudo normal. E eu, só observando. Ele olha novamente para o veículo em alta velocidade. Mas não vê o carro! Ele vê a lua. Clara, cinzenta, cheia de crateras. A lua! Ele ficou parado contemplando a lua, que lhe atropelou.

Ele morreu.

Explicação:

Dessa vez que foi futucar o nariz em busca de catota, o que arrancou na verdade foi um pedaço de nervo vindo do seu lobo frontal. Teve uma alucinação e foi atropelado por um carro prateado.

Moral da história: tirar catota não compensa.

E:

É melhor desfrutar de tua loucura natural, intrínseca, inerente à tua constituição e carga genética, perambular pelas ruas, ir às festas, etc, sem ficar te culpando se havia alguém para ouvir um peido barulhento acidental. É melhor.

Resististe até aqui?! Impressionante! Agora é ladeira abaixo. Boa leitura!

Contos enrustidos da loucuraWhere stories live. Discover now