A Feira e Futuro da Ficção (Carlos Rocha)

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Em Salvador, voltei aos negócios. Estávamos em plena ditadura, mas para um empreiteiro como eu, era uma época na qual havia dinheiro, e não me faltavam reformas e construções para conduzir. Para afastar minha mente de toda aquela sujeira velada que assolava o país, eu mergulhava na ficção científica. Quando não estava relendo algum livro ou conto genial de %Quincas Esturjão, lia livros importados de autores como Ursula Le Guin, Robert Heinlein, Philip K. Dick, Frank Herbert, Arthur C. Clarke, Kurt Vonnegut, Poul Anderson, Ray Bradbury, Jack Vance, Isaac Asimov e muitos outros. Tinha uma grande biblioteca de FC no meu apartamento em Nazaré e uma menor na minha casinha de Cacha Pregos. Eu era um verdadeiro especialista em sebos e livrarias e alguns livreiros haviam aberto canais de importação só por minha causa de meu grupo de amigos do CSLFC, Clube Soteropolitano de Leitores Ficção Científica. Ainda não usavam aquele termo, mas acho que deu para perceber que eu era um tipo bem Nerd.

Depois de mais uma temporada de dores de cabeça com as várias obras que conduzia, havia chegado o tempo de passar uns dias em Cacha Pregos. Ir para aquele local, era quase que uma operação de guerra. Como quase não havia nada lá, tudo que alguém acostumado com a vida na cidade pudesse precisar, como por exemplo, analgésicos, tinha que levar consigo.

Tomava um navio na Cidade Baixa que ia para Mar Grande, na Ilha de Itaparica e de lá, parando numa dúzia de lugarejos até que, depois de umas seis horas de viagem, você chegava à última parada. O navio encostava no atracadouro simples, que os locais chamavam de "ponte". E pronto, você estava praticamente fora da civilização.

O povo local, muito simples e trabalhador, era constituído de pescadores e coletores mariscos e crustáceos. Eu tinha um vizinho por lá, chamado Meireles que não era nativo, mas que sempre me levava para boas pescarias de mar aberto em seu barquinho a motor, pintado de branco, verde e vermelho, chamado Boa Vida. Havia também outros estrangeiros como Capitão Rocha e o Sr. Madureira, com quem eu ia para a mata caçar aves, pacas e tatus.

Minha casa ficava na rua do Porto. O vilarejo era tão pequeno que possuía apenas quatro ruas e uns poucos becos: A Do Porto, a Da Praia e a Do Meio e a Direita. O que se chamava de porto, era um extenso manguezal, no qual dezenas de pequenas embarcações, poucas delas motorizadas, ficavam ancoradas para sair e chegar, de acordo com a cheia e vazante da maré. As típicas canoas longas dos locais, chamadas de Calões, pontilhavam as águas sobre as quais a lua cheia nascia grande e amarela.

Era um lugar pacífico, com árvores frondosas que davam uma boa sombra. Lugar onde vendedores de peixe vinham à sua porta vender, caranguejos, aratus, peixes, camarões, lagostas, mariscos e uma infinidade de outros frutos do mar. Lá eu tinha contratados uma senhora que cozinhava e um rapaz que cuidava da casa e do quintal. Dona Lourdes e %Ladu. O passatempo favorito dos chachapreguetas era o jogo de dominó. Os velhos pescadores aposentados ficavam ali jogando o dia inteiro na famosa Praça do Pau-Mole. O dominó era um dos itens que, junto com a cachaça, se encontrava nas duas pequenas vendas do vilarejo, o Ioiô e a Bela Vista. Eram mercadinhos que lembravam algo do século passado, onde se comprava de tudo um pouco: funil, fósforos, chinelos, balas, bebidas, velas, querosene, etc. Não havia energia elétrica nem água encanada. Bebíamos água trazida de fora, ou captada da chuva, ou ainda, em última opção, água salobra bombeadas manualmente de cisternas nos quintais. Toda casa tinha a sua, isso era certo. A noite a iluminação era feita por lampiões à querosene.

%Ladu, um nativo magro e alto, com dentes tortos, era quem bombeava água da cisterna para a caixa d'água de minha casa. Ele estava muito chateado dá última vez que estive na ilha. Ele frequentemente brigava com colegas em jogos de dominó e eu temia que isso pudesse acabar mal para ele, um dia desses. Acordei naquela manhã disposto a aconselhá-lo a este respeito, mas me surpreendi quando ele veio conversar comigo.

Retratos não faladosWhere stories live. Discover now