Caim, o filho mais velho do casal, estava sentado próximo de sua colheita, pensando o que levaria para sacrifício quando ouviu a voz em sua mente lhe chamar. Assustado, olhou a sua volta, pegando um fruto do cesto próximo e levantando. Ele tinha a postura que lhe era designada, não a que lhe era desejada por seus fervorosos pais. Satisfeito, o chamou novamente, acalmando com palavras de mentira.
- Quem és e o que queres, voz? - apesar do tom alto em sua voz, a mão com o fruto caiu ao lado do corpo enquanto seus olhos passavam por todo o campo.
- Tenho ouvido seus pensamentos. - esta era, claro, mais uma mentira. Ele conduzia os pensamentos. - Sei que seu irmão é o querido de seus pais, é o querido de seu Criador. Vejo tudo o que vê, mas com olhos melhores do que os seus.
- És um anjo? - Caim perguntou, mais uma vez olhando a sua volta, descrente.
- Anjos aparecem para vós? - ele sibilou com escárnio. - Sou melhor do que um anjo. Sou alguém que garantirá sua vida eterna, sem morte como seus pais ou irmãos. Sou aquele que lhe trará o triunfo que desejas.
- O que tenho que fazer para tal, voz? - triunfar, como lhe era de direito, era tudo o que Caim mais desejava.
- Leve a seu Criador a oferenda que colhestes, apresenta-a antes de vosso irmão, mas não te curves. Mostre seu orgulho pelo o que faz.
- E qual será o significado de minha oferenda? Meus pais...
- Ouve a mim e nunca mais precisará ouvir vossos pais. Queres ser menor que vosso irmão mais novo ou ocupar o lugar que lhe é de direito? Faze-vos.
Caim então saiu de onde estava, o cesto em seus braços e os pensamentos voltados a quão grato seria de apagar seu irmão, de tomar o lugar que lhe era de direito e tão querido. Seus pensamentos eram o que o envolviam a ponto de não ver, enfim, sair da árvore que estivera próximo, uma serpente. A esmo, a mesma seguia o caminho enquanto o seu possuidor observava o homem sumir ao longe.
E como soubera, não demorou para que, dias depois, Caim voltasse, com a raiva brilhando em seus olhos, blasfemando contra tudo, inclusive seu Criador. Tomando novamente uma serpente e a mandando esconder-se, perguntou ao homem o que acontecia.
- Nada do que dizeste aconteceu, voz. Fui humilhado e agora tenho de ver meu inferior irmão a lançar-me olhares e tentar aconselhar-me a ser como ele. Nada deu certo, voz. Mentiste para mim.
- Vosso irmão é querido demais para que nossos planos funcionem. É preciso que o mate.
- Matar? O que é isso, voz?
- Levas vosso irmão para andar pela floresta e traga-o para cá. Pega então uma pedra e acerta-o na cabeça, quantas vezes forem necessárias até que seu sangue se esvaia. Neste momento saberás que ele está morto e tu poderás ser o dono de tudo o que ele tiver, sem dever explicações a mais ninguém.
- Odiariam-me.
- Isso o fará mais poderoso do que ele. Lhe dará a vida dele com sua, o tornará imortal e invejavel. - lá estava, pela primeira vez, a palavras que movia ambos. A inveja era algo que tiveram em comum desde o primeiro instante.
Foi por ela que Caim fez exatamente o que ele queria, não exitando em momento algum, afastando-se apenas quando o solo estava banhado de vermelho e um trovão vibrou pelo céu e uma voz grave e forte soou aos ouvidos de Caim, Adão, Eva e, para seu terror, o seu.
"A voz do sangue de teu irmão clama a mim desta terra."
Ouvindo isso, Caim não temeu. Por outro lado sentiu fúria, sentiu que enfim mostrava a que estava ali, que era esse o seu dever e local. Que não poderia aceitar ser esquecido. O Criador, vendo a falta de arrependimento e o coração tomado de inveja, condenou Caim a não morrer e realmente tornar-se imortal. Porém ele não teria prazer em comer, beber ou trabalhar. Não haveria descanso para ele ou sua alma. Enquanto seu coração fosse duro, ele seria como aquele que o tinha transformado.
Partindo então Caim da terra de seus pais e da presença do ser que não o aceitava, carregando raiva e rancor de seu falecido irmão, não mais olhou pra trás ao criar sua própria descendência e sendo esquecido pela voz que o ajudara.
O Criador, porém, não se esquecera daqueles que invisíveis estavam aos olhos de seus filhos amados.
- Tentastes meu filho e conseguiste o que querias. Quantos mais pretendes tentar?
- Lembras de mim agora? Não sou mais um filho?
- Deixastes de ser de minha família, um de meus filhos ao cair. Deixastes de merecer um lugar de honra na volta para o lar quando decidiu desviar meus filhos de casa. O que lhe move a isso?
- Eu mereço. Eu O conheço. Eles nem sequer lembram de Ti.
- A inveja te destruiu, porém, mesmo que tente cada um de meus filhos, eles poderão ter o perdão. Sabes que não há volta para ti.
- Minha felicidade está em tirar uma alma de seus amados filhos de ti. Um eu consegui, e sei que isso o enfraquece, o faz sofrer e não me cansarei. Eu não durmo, eu não como, eu não sinto...
- Sentes. Sabes que sentes. Se não sentisse não estaria pensando nisso. Estaria do meu lado e de seu irmão.
- Preferiu ele a mim! Eu que cheguei antes...!
- Tu se deixaste consumir por tal ciumes, não se arrependes e odeias a mim e a meus filhos. Não existe mais caminho de volta para ti, Lucifer.
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Conturbado
Short StoryO primeiro ato de inveja ocorreu muito antes do primeiro homem caminhar pela Terra, porém ela se disseminou quando o primeiro sangue humano foi derramado, quando a Terra clamou por aquele sangue e quando um homem se tornou errante em meio a seu povo...
Conturbado
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