Conturbado

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Conturbado

No início das eras não se conhecia o certo e o errado, o bem e o mal, a luz e as trevas. Mas tudo isso mudou com a queda, com a dor e com a inveja. Até então desconhecidas, todas as coisas para o homem se tornaram tentadoras e impossíveis de resistir. Desde a primeira mordida no fruto proibido.

Acreditava-se na inocência e na desobediência de Eva, que ouviu a serpente e pecou, não dando ouvidos ao Senhor, seu Deus. Com isso veio a punição à ela e a Adão e como tal, a expulsão de seu lar: o Éden.

Alguém, porém, estava satisfeito em saber que os dois primeiros, tão amados e a grande esperança do Criador tinham fracassado, que eles tinham sido grandes decepções e isso, graças a ele. Ele que via tudo de longe, que assistia sem poder falar, que ficava perto, sem poder tocar, que não era ouvido, a não ser que usasse outros meios para tal, como descobrira ao sussurrar pela boca da serpente. Ele, que conseguiria fazer aquelas pobres almas se curvarem e provava o grande erro do Criador fazendo-os pecar em tão pouco tempo.

Sua felicidade, porém, não durou muito. Notou que mesmo sem poder ver, ouvir e passar horas na presença do Criador, o casal era amado, recebia visitas celestiais, fossem de anjos ou por sonhos e seguiam diligentemente aquilo que o Senhor pedia. Agora, porém, ele tinha a possibilidade de estar ao lado deles, observando tudo de perto, coisa impossível no Éden, que era tão abençoado. Ali, porém, continuava a não ter poder de tocar, de ferir, de se fazer ouvir. Ele invejava aqueles humanos, com escolhas e emoções, com corpos. Ele queria um corpo, um corpo perfeito, como eles tinham. Sua queda o aprisionou no espírito.

Ouvia as conversas animadas do homem com sua mulher, Adão e Eva, e fora assim que notara que eles tinham um corpo, alimento e um lugar para morar, animais para caçar e modos de plantar. Toda aquela grande Terra, grande demais para duas pessoas, era apenas deles. E eles povoariam a Terra. Ele sabia que haviam muitas almas a espera. Ao contrário daqueles dois com corpos, ele se lembrava do que o fizera estar ali, junto com muitos outros sem corpos. O que ele não tinha ideia é de como as muitas almas viriam, como eles estariam todas juntas.

Sua resposta veio não muito depois. O tempo passava torturante, agonizante, mas ao mesmo tempo rápido para ele que apenas observava, cobiçoso, os corpos e a vida que queria ter, a vida que os dois humanos tinham. Quando a primeira alma chegou, além do temor chegar sobre si e os demais, chegou um sentimento que já cultivava há tempos. Ele não aceitava perder tudo aquilo. Uma alma mais tinha ganhado aquilo que era seu e ele decidiu, a partir dali, que faria de tudo para que todas perdessem, lentamente, tudo também.

Os anos lentos se passaram, e após a primeira alma veio a segunda. Um plano se findou, um que apenas ele poderia ter. Ninguém o via ou ouvia ainda, era o cenário perfeito para que tudo acontecesse como planejava. Dois irmãos, como assim se chamavam, que ao crescerem e se transformarem em homens, como os pais e juntarem-se a outras almas que já haviam vindo depois, foram cumprir mais um mandamento sem discussão. Eles nunca discutiam sobre os mandamentos.

Ele, porém, já havia notado qual irmão era mais obediente, qual irmão seria mais facilmente manipulável. O seguiu dias a fio, sussurrando coisas em seu ouvido, notando aos poucos o descontentamento que se abatia sobre o corpo do homem a cada dia. Satisfeito, investia a cada dia mais, sussurrando até que o mais velho enfim começou a questionar a cega dos pais.

E foi assim que o dia próximo ao sacrifício chegou. Ele estava pronto para gastar suas forças mais uma vez e concretizar aquele que seria o seu plano para destruir e causar mais decepção, para arruinar um plano que lhe era de direito e lhe fora tomado.

ConturbadoWhere stories live. Discover now