Artimanhas

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Costuma-se falar que no desespero sempre revisitamos nossas ações para entender como fomos parar naquela situação. Só que não é a vida toda, não. A vida toda passa em flashback em nossas cabeças apenas quando estamos correndo sérios riscos de morte. Aqui é diferente, trata-se de um caso de punição por ter cometido um erro. Ou um crime, como as pessoas lá do lado de fora preferem afirmar. Nestes casos, as únicas coisas que passam em nossas cabeças são os atos que nos levaram até aquele ponto. Bem, no meu caso acaba sendo flashback da vida toda mesmo, porque isso tudo começou na minha infância.

Assim que cheguei ao jardim de infância, percebi que as coisas seriam complicadas. Era filho da secretária de um colégio frequentado por bacanas da Zona Sul e por isso não pagava mensalidade. Entretanto, era difícil acompanhar os coleguinhas mantendo um mesmo patamar em relação ao material. Eles tinham os melhores gizes de cera, canetinhas coloridas e potinhos de guache. Enquanto isso, eu tinha de me contentar com três canetas esferográficas, uma azul, uma vermelha e uma verde, que mamãe desviara do balcão de atendimento da escola. Tinha vergonha dos meus desenhos quando comparados com os dos outros alunos. Os deles eram borrões combinados com traços aleatórios, mas que, com tantas cores e diversidade de texturas, pareciam verdadeiras obras de arte. Já os meus eram redemoinhos e rabiscos uniformemente finos em três cores. Eram quase ilustrações para jogos de Atari.

- Vejam só – diziam os pais ao olhar os desenhos dos outros alunos expostos. – Eles estão se esforçando para valer.

- Ah tá – exclamavam os mesmos pais ao verem os meus desenhos expostos. – É aqui então que testo se a caneta do balcão da secretaria está funcionando.

Algo precisava ser feito e não demorei muito para bolar um plano e colocá-lo em prática. Juntei-me a um tal de Valter, menino rechonchudo que era sempre excluído das brincadeiras pelos outros alunos por ser meio bruto. Isso para não falar da discriminação que ele sofria na hora da merenda. Formamos uma dupla e começamos a fazer com o que os outros alunos me emprestassem o material e dessem para o Valter o pudim da sobremesa. Eles sempre perguntavam no início por que deveriam fazer aquilo:

- Porque caso contrário vou fazer pipi no seu colchonete na hora da sonequinha e vão pensar que você precisa voltar a usar fraldas – disse para o Marcinho.

- Porque vou contar para todas as professoras que você anda mostrando a calcinha para os meninos, arruinando assim sua fama na alta sociedade para conseguir um marido, lhe restando apenas a carreira de modelo de catálogo de lingerie por atacado – falei para a Aninha mostrando o meu lado mau precoce.

- Porque eu vou te morder todo – afirmou o Valter deixando transparecer que seu humor não era dos melhores antes da merenda.

Nosso projeto foi um sucesso. Em menos de dois meses, meus desenhos pareciam obras de Monet com tamanha diversidade à minha disposição. Já o Valter morreu de uma crise hiperglicêmica que ninguém soube explicar, pois a alimentação da escola era balanceada conforme orientações de um nutricionista que acabou demitido. Ainda assim, eu estava convencido que essa seria a melhor forma de obter qualquer coisa que quisesse.

Passados alguns anos, ainda criança, lá estava eu tramando novamente, agora no pracinha do bairro. Meu objetivo não era mais material escolar, mas as tão desejadas caixinhas de estalinhos. Mamãe raramente me dava dinheiro para comprar estalinhos, enquanto as mães das outras crianças que lá frequentavam torravam uma grana abastecendo verdadeiros arsenais. Tanto que era possível escutar a praça de quase três quarteirões de distância por conta da enormidade do som dos estalos.

Daquela vez montei um plano mais complexo, só que para dar início a ele, precisaria de mais do que um parceiro. Arrumei então dois comparsas da mesma idade que a minha. Jeferson era um menino que vivia com o nariz escorrendo e quase não curtia estalinhos, porque, ao manuseá-los com seus dedos cheios de meleca, eles não estouravam. Mariana era uma menina histérica que não suportava que jogassem estalinhos perto dos seus pés. Fizemos então um movimento digno de planejamento militar. Primeiro, tomamos posse da casamata da praça. Ela era uma casinha que ficava em um patamar elevado com alguns brinquedos embaixo. Para chegar nela, existiam três escadas. Para descer, tinham seis tipos diferentes de escorregas. Era o objeto de consumo de toda criança. Elas ficavam subindo por um lado e descendo pelo outro incansavelmente, como se fosse uma linha de produção frenética. A criança entrava ofegante na forma de matéria-prima na casinha que era a máquina, depois saía do outro lado histérica, deslizando escorrega abaixo, como um produto acabado barulhento.

Cai na realWhere stories live. Discover now