Na noite seguinte

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Acordei num sobressalto, sentindo os pulmões trancados. O sangue escapou de minha boca e nariz, dos meus olhos e ouvidos de uma só vez, como se me encontrasse afogado nele, como se ele estivesse em todos os lugares menos onde deveria. Sentia claramente a ausência da minha pulsação. Estava morto.

Era o que parecia, ou, pelo menos, o que quis naquele momento. Minhas vísceras ardiam enquanto eu tentava conter o pânico. Era muito sangue! Onde eu estava?

Esfreguei os olhos tentando tirar o borrão vermelho que os dominava, mas pouco distingui do que vi ao meu redor. Tive de ter paciência até as imagens clarearem. Era noite, aparentemente me encontrava em um galpão. Paredes altas de madeira, vigas segurando o telhado, cordas enroladas, caixas de diversos tamanhos marcadas por stêncil: Talude-5259, Adriah-733, Pelegrinni Logística... Curvado, tentando cuspir o sangue que ainda escapava de minha garganta, sentia que meus cabelos pingavam água salgada. Minha calça e camisa grudavam na pele exalando o mesmo cheiro. Apenas meu casaco longo parecia mais seco, mas não me servia direito, limitando meus movimentos. Rasguei-o em um gesto brusco, louco para me soltar, para me livrar dessa sensação sufocante, e o vi partido em dois nas minhas mãos ensanguentadas numa facilidade um tanto assustadora. Esfreguei meu rosto naquele tecido caro que eu havia arruinado.

Era um maldito porto, já tinha percebido, mas o que eu estava fazendo ali? Sangrando, molhado... que diabos estava acontecendo comigo?

Me impus silêncio, fechei meus olhos e pude ouvir o mar, o som dos cascos dos navios batendo contra os ancoradouros. Cloc-cloc, cloc-cloc... Eu adorava esse som, não podia ter esquecido disso. Talude-5259, Adriah-733... Pelegrinni Logística. Puxei o ar, enchi meus pulmões, soltei devagar. Entendi que não precisava respirar de verdade, mas o fiz de teimosia: inspira, expira, pensa. Pensa, pensa!

A porta estava trancada com corrente e um pesado cadeado. Alguém tinha me prendido ali, me matado e me colocado um casaco de mulher. Bizarro, não? Andei em círculos, com paradas para vomitar um pouco mais, me sentindo cada vez mais fraco, o polegar checando meu pulso, em vão.

Tateando mais uma vez a porta, deslizei as mãos cada vez mais para cima, então um pouco mais. Os pés, cujos coturnos vazavam água do mar, também tentaram encontrar uma forma de subir e foi então que eu me vi apoiado na porta, como se a mesma fosse meu novo chão. O susto foi tão forte que a empurrei com força me lançando no solo - o "verdadeiro" - me estatelando nele - dor, pelo menos, eu ainda sentia - e olhando chocado para as marcas de sangue que minhas mãos deixaram lá no alto da porta escura:

Eu precisava de um exorcismo?

Bastaram alguns minutos para eu conseguir constatar: estou em um porto, preso em um galpão, aparentemente morto e sou católico. O que ainda não sei? Quem me matou, por que estou aqui, de quem era o casaco que arrebentei e, algo um pouco mais urgente como: meu maldito nome.


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