Capítulo 1

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Conto extraído da coletânea de Samara Nunes: "E AÍ, MARGINAL?"

Uma carta para Noel

Parte I

Eu sempre fui um golpista, um trapaceiro. Meu negócio era "dinheiro fácil". Costumava assaltar velhinhas indefesas, na "saidinha de bancos" após receberem seus pecúlios, pensões ou aposentadorias, nos guichês. Os dias de pagamento da Previdência Social estavam, todos, marcados em meu calendário e em minha agenda de trabalho. Golpes e falcatruas eram meus instrumentos de trabalho. Fui entregador de pizza, entregador de flores, cestas de café da manhã... Sempre foi fácil para eu acessar um prédio residencial inteiro, escritórios então, eram mais fáceis ainda. Trancava todos no banheiro e saía ileso, pela mesma portaria, por onde entrei com as "flores". Agradecia ao porteiro e saía sorrindo com dinheiro e jóias nos bolsos. Dias, semanas e até meses antes, eu planejava a estratégia do ataque. Vasculhava as latas de lixo, pois o lixo fala muito sobre seus donos. Lá, eu conhecia o nome da vítima, nas correspondências mal rasgadas dos moradores. Tinha acesso ao número do apartamento, data de nascimento em formulários ou informativos e... pronto. Já tinha o álibi para entrar no local. O resto era mais fácil: um presente, uma entrega especial, um bom disfarce de carteiro, florista ou entregador... tudo dependia da ocasião e do perfil da vítima escolhida. Outra coisa que me ajudava, e muito, é o fato de que eu sempre trabalhei sozinho, o que dificultava que eu fosse pego.

É claro que eu andava armado, só para me garantir. Eu não sou partidário do uso da violência, por isso escolhia minhas vítimas a dedo, traçando com antecedência, o risco de reações indesejadas.

Como vocês podem ver, eu sempre fui muito profissional e meticuloso em meu trabalho.

Épocas de festas, principalmente o natal, eram muito lucrativas, pois eu conseguia por as mãos em verdadeiras boladas. Décimos terceiros salários e economias para as compras, por vezes vinham parar inteirinhos em minhas mãos.

Lembro-me de um natal em que eu entrei em uma joalheria com o pretexto de comprar um presente para minha esposa. Assaltei a joalheria e os clientes também. Todos estavam com suas carteiras recheadas. Fiz um bom dinheiro e nem precisei trabalhar no verão seguinte. Tirei umas, merecidas, férias.

O mais curioso disso tudo é que eu nunca me considerei um "criminoso". Não sei se pelo fato de eu nunca ter atirado em ninguém ou ferido seriamente uma pessoa, ou, porque eu levava a sério meu trabalho. A verdade é que eu recriminava a violência e sempre me coloquei contra a qualquer tipo de agressão. Sempre critiquei e me indignei com as práticas agressivas que estampavam as manchetes dos jornais. Não posso dizer que eu tratava bem as minhas vítimas, a final, eu tinha que demonstrar do que eu "seria capaz", caso não cooperassem.

Eu intimidava, acuava... Fazia tudo para ter a certeza de poder agir sem interferências. Por isso, empurrões, socos nas costas, tapas na cara e até coronhadas na cabeça, faziam parte do meu repertório. Eu sempre gostei de dar uma ou duas coronhadas em alguém mais saidinho. Mas eu sabia onde bater, para que resultasse apenas em uma escoriação, um roxo, uma contusão fraca. Já amarrei com fita crepe, amordacei, sufoquei brevemente, com sacola plástica; mas nunca tive a intenção de deixar sérias sequelas ou de acabar com a vida de alguém. A verdade é que isso me soava como um favor, uma caridade... Eu nunca me enxerguei como um sujeito ruim, mau, perverso. Mas eu sabia, lá no fundo, eu sabia que, no caso de ter que salvar meu couro, eu seria capaz de matar.

Uma Carta para NoelWhere stories live. Discover now