Lar doce lar

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Nunca parei para refletir sobre a morte. Nunca me apeguei a detalhes e obviamente sempre descartei o incerto. O futuro sempre me pareceu uma incógnita e o passado uma sombra devastadora amante das maiores tormentas do presente. Assim, sinto que minha vida se vai como a batida das asas de um anjo, ritmados a voz e violão em um simples arranjo. O que aconteceu e o que está acontecendo é obra de um bem maior e isso eles não podem tirar de nós. Jamais. Meus olhos se curvam lentamente ao sopro do vento, meus braços continuam amarrados e meus lábios presos por algo que desconheço. Isso eles podem tirar de mim. Minha liberdade, mas não minhas verdades.

Pela primeira vez após ter sido capturada me deixaram caminhar pelo quarto melancólico e frio. Após todo esse tempo, enfim, acredito que meus dias de ociosidade e sofrimento chegarão ao fim em breve. Enfrentei uma quarentena e encarei de frente a morte. Tentando entender esse momento levanto desconfortavelmente e com dificuldades chego até a beira de uma janela.

Quando tudo na vida está perdido a esperança nos faz caminhar e a realidade se torna alicerce de todo esse processo estranho. Pensando assim, uma lágrima escorreu sobre meu rosto. É inaceitável o que acabei de ver! Inacreditável! Pessoas não são mais pessoas. Não consigo descrever o que vi, tampouco, a dor que agora assola meu peito. Nesse momento de choque uma série de fatos desencadeiam-se de minha memória. Minha cabeça queima como uma chama duradoura. Gritos de desespero são disparados por mim e meus movimentos são registrados por uma câmera. Me jogo desesperada no chão e mergulho em meu passado.

O inverno já havia chegado. Virei meu cachecol de lado e ao abrir a porta de minha casa dei de cara com June, ela estava completamente agitada. Seus pelos estavam tão brancos quanto a neve que caia lá fora, seus olhos brilhavam como de costume, mas algo estava diferente. Observei tudo rapidamente e não encontrei nada que escancarasse minha desconfiança. Assim, fui preparar um café. Após alguns minutos, o miado da gata tomou conta do espaço, logo em seguida, uma porta bateu com muita força. Meu coração acelerou e o medo marcou presença. Peguei uma faca e segui silenciosamente em direção aos miados de June. Havia um pequeno corredor que me guiava a três portas: uma à direita, outra à esquerda e à última no fim do corredor.

Segui em direção à última porta, as luzes se apagaram de repente, me assustei imediatamente, porém as circunstâncias não me intimidaram. Após alguns passos sinto que pisei em uma poça de água ou algo do tipo. Me agachei e ao passar o dedo no "líquido" a surpresa: não parecia ser água como tinha imaginado a princípio. As luzes se ascenderam e ao olhar para meu dedo e para o chão comecei a gritar. Sangue estava espalhado por toda parte e as paredes estavam marcadas por escrituras e desenhos ritualistas. A porta de onde vinha os gritos da gata se abriu e batia freneticamente repetitivas vezes. Até que o barulho do vidro da janela sendo quebrado foi ouvido por mim. Sem alternativas, fui correndo para o lado de fora e encontrei June morta. Seu sangue escorria e a neve ganhava cor.

Lágrimas ao AmanhecerWhere stories live. Discover now