Prólogo - Como tudo começou

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OFF: Instagram do livro trilogiaguardioes 


"A natureza criou o tapete sem fim que recobre a terra. Dentro da pelagem deste tapete vivem todos os animais respeitosamente. Nenhum o estraga, nenhum o rói, exceto o homem."

 – Monteiro Lobato –



1996

Florianópolis, campo, localização desconhecida. Duas e cinco da manhã.


Corro desesperado pelo campo sem vida tentando encontrar um lugar seguro. Há som de explosões e tiros por todos os lados. Olho para minhas mãos cobertas de sangue e pela poeira que paira no ar. Sim, um daqueles tiros me acertou bem em cheio enquanto eu tentava fugir. Só não posso deixar que eles me encontrem, não quero morrer sem noticias da minha neta e de minha esposa.

Apesar de saber que o meu corpo já não me obedece como antes, dou o meu melhor para respirar com cautela e arrastar minhas pernas.

Paro de frente a uma cabana de madeira velha e abandonada. Olho para trás de relance e nada enxergo. Empurro a porta sem o mínimo esforço e ela range.

Há bichos que se remexem no chão – os quais não consigo identificar – ratos e morcegos pendurados no teto. Está escuro demais. Caminho com dificuldade até umas das paredes e quando percebo que não aguento dar mais um passo deixo meu corpo desabar no chão.

Tudo me vêm à cabeça.

A guerra ao qual nos encontramos, a insegurança do futuro e... a minha Lúcia. Ah, se pelo menos eu pudesse vê-la mais uma vez morreria feliz. É isso. Tenho medo da morte, de encará-la na verdade, mas ela já está pronta para vir me buscar. Lágrimas escorrem pelo meu rosto e eu encaro o teto, desolado.

Tento respirar pela boca. A bala enterrada em meu peito agora me sufoca aos poucos. Não há mais ninguém do lado de fora e todos os outros já estão mortos. Eu sou o único que restou e até hoje me pergunto como consegui chegar até aqui.

Tento controlar meus batimentos, permanecer o maior tempo possível vivo. Mais uma explosão. Percebo que a cabana começa a desmoronar então arrasto meu corpo até um canto coberto por feno. Talvez essa cabana, na verdade, seja um antigo celeiro, não sei distinguir realmente.

Ouço um barulho de passos pesados. Minha visão está embaçada demais para enxergar e a fumaça, agora tomando conta, também não ajuda.

–Pedro... está ai? – é quando escuto o soar meigo de suas palavras. Abro os olhos e vejo sua silhueta, procurando pela minha sombra em meio a toda aquela imundice.

Abro um largo sorriso, que logo se desfaz.

–Vá embora Lúcia! – minha voz sai rouca e com dificuldade. Tusso para continuar. – Isso aqui irá desabar daqui a pouco. Não tem muito tempo. Você precisa fugir!

–Ah, Pedro! Eu sinto muito. – ela diz soluçando e se agachando ao meu lado. Parece um anjo naquela fumaça cinza. Toco seus cabelos levemente com os dedos, que descem até sua face meio enrugada e limpo suas lágrimas.

Minha Lúcia é tão bonita!

–Não se preocupe meu amor. Desde que Helena engravidou nós sabíamos que isso aconteceria. Está na hora de eu partir. Você é a pessoa mais importante na minha vida, Lúcia. Obrigado por tudo, eu vou sempre te amar. – sussurro tentando confortá-la. Ela me olha nos olhos, deixa os lábios quentes roçarem em minha testa e deita sobre meu braço.

–Eu também te amo Pedro!

–Já soube da nossa neta? – pergunto reunindo minhas forças.

–Helena já entrou em trabalho de parto. – diz sorrindo triste. Passo a mão pelo pescoço e tiro meu colar. Eu tomo suas mãos nas minhas e ali o deixo, logo depois de um beijo. Sorrio para ela porque ela sabe o que fazer com ele.

Suspiro de alivio assim como meu corpo.

–Que bom. Nossa neta vai ser forte. Confio nela.

Lúcia soluça mais uma vez. Seus cabelos grisalhos estão na frente do rosto. Outra explosão. Uma fisgada de dor me atinge em cheio e não consigo mais ver.

–Está na hora. – sussurro mais uma vez. Ela murmura um "não" mais triste que eu já ouvi na vida. Aquilo me dói por dentro, mas eu não posso fazer nada. Deixo meu corpo amolecer lentamente. Sinto que minha alma está pronta para partir.

De repente a dor some e eu não consigo mais mexer os braços. Fecho os olhos e deixo um sorriso estampado no rosto.

Minha mente se vai.

Estou partindo desse mundo, suavemente.

Os GuardiõesOnde as histórias ganham vida. Descobre agora