Capítulo único

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MAIS UMA VEZ me peguei o observando, lembrando dos bons momentos que vivemos, lamentando o quanto o tempo passa rápido. Embora faça seis anos, as lembranças ainda estão frescas em minha memória. Até parece que foi ontem que meu mundo desmoronou pela primeira vez quando minha mãe sofreu de infarto, sete anos atrás. Devido a sua idade, ela vinha sofrendo com sua saúde debilitada, e embora os médicos nos tivessem alertado, papai e eu nunca aceitamos esse fato. Nós acreditamos no milagre até o fim, porém aprove Deus levá-la. A dor de sua morte causou grande baque em mim e desde então passei a cuidar mais do meu pai que, aos setenta e oito anos, apresentou depressão devido a morte de mamãe. Um ano depois, notei que ele passou a ter pequenas facilidades em esquecimento, mas foi no dia vinte e três de março que meu mundo desmoronou pela segunda vez.

     Era um dia ensolarado, atípico naquela estação do ano. O relógio marcava oito e meia da manhã, quando papai acordou e veio ao meu encontro.

     — Quem é você? — ele perguntou, parecendo confuso.

     O encarei por alguns minutos, em seguida esbocei um sorriso divertido.

     — Acordou brincalhão hoje, pai — disse, feliz por ver papai brincar, o que raramente acontecia depois que mamãe se foi. — Vamos, come logo porque ainda temos que levar flores para mamãe.

     — Pai? — um V se forma entre suas sobrancelhas — Do que você está falando? — insistiu ele, sério. — Quem é você?

     Paralisei onde estava, desacreditada. Encaro papai e vejo medo em seus olhos. Não era uma brincadeira. Suas mãos estavam trêmulas, sua expressão séria e confusa. Um nó se formou em minha garganta ao constatar que meu pai não se lembrava de mim.

     Naquele dia não levamos flores para minha mãe. Nem no dia seguinte, muito menos nas semanas posteriores. Depois de alguns exames papai foi diagnosticado com Alzheimer; saí do hospital desolada, sem saber o que faria dali em diante. Era como se tivesse entrado em um pesadelo, só que real. Comecei,então, uma corrida desesperada a hospitais, médicos e medicações, mas nada dava certo. Depois vieram as crises de agressividade, seguidas de depressão profunda e um desejo muito forte de morrer. Me senti incapaz de lidar com a doença, mas o que mais me doía era me sentir incapaz de lidar com meu próprio pai.

     Mais uma vez houve uma mudança radical em minha vida. Me senti sozinha nessa batalha por um longo tempo. Embora meu noivo estivesse sempre ao meu lado me apoiando, acabei perdendo alguns amigos e até mesmo alguns familiares se distanciaram. Adiei meu casamento duas vezes e nesse meio tempo aproveitei para me aproximar mais de meu pai. Com o passar dos meses, ele passou a ter mais confiança em mim. No dia do meu casamento minha emoção foi duplicada; além de casar com o homem da minha vida, papai aceitou me levar até o altar.

     — Você não precisa fazer isso se não quiser, pai — disse a ele, horas antes do casamento. — Mas ficarei imensamente feliz se fizer.

     — Se a bonequinha vai ficar feliz, eu faço — ele respondeu com dificuldade, mas aquele sorriso que tanto me emocionava estava em seus lábios.

     Bonequinha é um dos nomes que ele me deu, mas na maioria das vezes papai me chama de anjo da guarda. Dificilmente lembra meu verdadeiro nome, mas nunca se esquece dos apelidos.      

    Nossa rotina mudou mais uma vez quando Lucas, meu marido, veio morar com a gente. Papai sempre se assustava com sua presença e variava as suas reações. As vezes ele mandava Lucas ir embora de casa achando que era um estranho e outras vezes ameaçava ligar para policia, caso Lucas me machucasse. Meu marido sempre agia com naturalidade e juntos conseguíamos contornar a situação. Era sempre triste ver meu pai naquele estado, mas me trouxe alegria constatar que ele ainda se importava comigo. Embora não soubesse que sou sua filha, ainda assim ele cuidava de mim do seu jeito. Às vezes tinha dias agitados, outras vezes tranquilos, mas com o tempo aprendemos a lidar com ele.

     Em uma noite chuvosa, peguei papai observando a chuva. Seu olhar distante vagava de um lado para o outro, parecia submerso em seu próprio silencio. Notei que a cada relâmpago seus olhos se arregalavam, revelando uma expressão de medo. Sentei ao seu lado e o abracei cariosamente, ele segurou em meu braço e encostou sua cabeça em meu ombro, como uma criança indefesa. Foi inevitável não lembrar das mesmas noites chuvosas em que os papeis estavam invertidos. Lembrei de todas às vezes que ele me abraçou quando tive medo, ou me deu colo quando me machuquei.

     — Por que existem trovões? — perguntei, nos braços dele, enquanto fechava os olhos com medo.

     — Deus os fez, princesa, não precisa ter medo — ele responde calmamente, enquanto me aperta mais em seus braços.

     — Eu não gosto deles... tenho muito medo!

     Escuto uma ligeira risada em meio ao barulho da chuva, então abro os olhos para encara-lo, ele beija minha testa e diz:

     — Não se preocupe, eu sempre vou estar aqui para te proteger.

     Senti as lágrimas descer por meu rosto com as lembranças, enxuguei-as antes que papai me visse chorar, porém ele foi mais rápido do que eu.

     — Também está com medo? — ele sussurrou.

    — Não — respondi contendo o choro. — Não precisa ter medo, eu vou te defender sempre! 

     Um ano depois ele começou a apresentar mais dificuldades para executar algumas tarefas. De inicio pensei que Lucas e eu conseguiríamos suprir suas necessidades, mas papai foi ficando cada vez mais dependente de nós. Meses depois descobri que estava grávida e embora essa seja uma ótima noticia, passei várias noites chorando pela hipótese de ter que deixar meu pai em uma casa de repouso. Sem ter alternativas,  comecei a procura tomando os devidos cuidados, certificando-me de que ele seria bem cuidado. Aparentemente a mudança não o afetou muito, mas eu sabia que seria difícil para ele. Eu estava um caco por dentro. Durante todo tempo busquei em Deus alivio e graças a Ele tive forças para enfrentar tudo. Nos dias de visitas estava lá em ponto, pronta para aproveitar cada segundo com meu pai. 

     Cheguei à casa de repouso e logo a cuidadora avisou que ele estava no pátio. Segui o caminho alegre, ansiosa para ver o largo sorriso no rosto de meu pai. A cuidadora passa a frente, toca em seu ombro franzino e diz: 

     — Senhor Carlos, a sua visita chegou. 

      Ele vira com dificuldade, me observa por alguns instantes e então abre o sorriso que eu espero ansiosamente todos os dias. 

     — Ela chegou! — ele diz mais alto que pode. — Meu anjo da guarda chegou! 

     Me sento ao seu lado e pego em suas mãos, que outrora eram rígidas e fortes, que por tanto tempo me deram carinho, e agora estão com a marca da velhice. Acaricio seu rosto, contemplando seu gracioso sorriso e olhos brilhantes que tanto me fazem lembrar dos bons momentos que vivemos e da doçura que existem neles. Não importa como foi meu dia, todas às vezes que olho para meu pai esqueço de tudo, sou preenchida por seu amor. 

     — Eu te amo, pai — falei, retardando as lágrimas que se formam em meus olhos. 

     — Eu também, anjinho da guarda — ele beija o dorso da minha mão. 

      Pego a bíblia em minha bolsa para iniciarmos nossa leitura. Papai costuma ficar muito feliz com esse momento e eu também, mesmo sabendo que ele irá esquecer quase tudo nos próximos dias. 

      Hoje em dia eu aprendi a olhá-lo sem chorar de tristeza. Hoje meu choro é de alegria, por ter chegado até aqui, por conseguir fazer meu pai feliz, pois seu sorriso é a linguagem que conforta minha alma. Hoje eu aprendi a valorizá-lo mais do que antes e apesar de tudo que passamos, nosso vinculo amoroso está mais forte. Sempre digo que o amo e lhe dou beijos e carinho todo tempo que estamos juntos. Não importa se ele não me reconhece, se não sou mais sua filha, pois independente de tudo eu sei quem ele é. E ele é meu pai, o meu herói e eu estarei ao seu lado até o último dia da sua vida.

Notas: 

Palavras: 1364

Fonte de inspiração: casos de Alzheimer/superação

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