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Ela acordou, após ter conseguido encontrar uma posição minimamente confortável no pequeno sofá velho do quarto 23 do terceiro andar do hospital, cujo nome parece ter perdido a importância ao longo dos anos. Contudo, apesar do esforço, as dores no pescoço e nas costas são irrefutáveis, assim como o cheiro a velho e a mofo que se entranhou na sua pele.

Ela chama-se Aline, tem dezasseis anos e descobriu que a mãe tem uma doença terminal precisamente há dois dias. O nome Aline que lhe fora dado no dia do seu nascimento, momentos após ver o mundo pela primeira vez, é na verdade um diminutivo de Adeline, o nome da sua tetra – avó materna. Adeline vivia numa comuna denominada Saint-Bertrand-de-Comminges, em França, onde teve, sem dúvida, uma infância maravilhosa e cheia de alegria e amor, mas quando esta fez dezoito anos sabia que já não era suficiente. Ela queria ser uma atriz de renome, alguém para quem as pessoas pudessem olhar e admirar; queria pisar um palco e encorpar a pele do maior número de pessoas possíveis; queria aventura, diversidade, emoção, paixão, dor, alegria, tristeza. Ela num só corpo queria experienciar as diferentes vidas que outros corpos alimentam, ver o mundo de todas as maneiras possíveis, fazer o possível e o impossível. Espantosamente, conseguiu. Adeline, saiu de França e foi até Lisboa, onde pisou o palco pela primeira vez e onde conheceu o homem com quem viria a casar e a ter filhos. Após uma vida de sucesso, acabou por falecer nos bastidores da que viria a ser a sua última peça.

"Concretizou o seu sonho, fez do teatro um motor de vida, amou e foi amada. Permanecerá eternamente connosco." – Inscrição na lápide de Adeline Allard.

Aline herdou o nome da sua tetra-avó, é só isso que ela sabe, é só isso que lhe contaram. Para os seus pais, era fundamental ter os pés assentes na terra, por mais que a vida lhes desse asas para voar.

Sete da manhã, o hospital, repleto de pacientes, almas, familiares, médicos, enfermeiros, ajudantes e talvez anjos e demónios, aparenta vazio. Aline vagueia pelos corredores do terceiro andar do hospital, olhando sorrateiramente para dentro dos quartos e vendo como as pessoas dormem calmamente ou não, enquanto a doença os mata calmamente, ou não.

Ela tenta evitar permanecer muito tempo no quarto da mãe, pois sempre que olha para ela, imagina aquela poça de sangue em torno da sua cabeça. Foi no dia de natal, e de um momento para o outro, algo terrível aconteceu. Ela tinha acabado de acordar e a mãe estava no jardim. A mãe desmaiou e, ao cair sobre a relva molhada, deixou cair um jarra que segurava com as mãos. Aline ouviu o estilhaçar e veio em seu auxílio, gritou por ajuda, mas mais ninguém estava em casa. O pai tinha saído para comprar um presente de que se tinha esquecido e o irmão já não vivia com eles. Ela ligou para o 112 e a ambulância não tardou a chegar. No caminho, ligou para o pai, que as esperava na porta do hospital quando elas lá chegaram. Os momentos na sala de espera, desde a chegada do irmão ao hospital à saída do pai para comprar comida, pareciam intermináveis. Porém, o momento que parece ter demorado mais tempo a passar foi aquele precioso minuto em que o médico explicava que os exames feitos à mãe indicavam que esta tinha cancro num estado muito avançado. As palavras que saíam da sua boca pareciam percorrer a sua longa bata branca para, de seguida, rastejarem pelo chão e arrastarem-se pelos corpos dos ouvintes, ficando muitas delas retidas no peito sem terem capacidade de chegar aos ouvidos.

Desde aquela noite que Aline tem ficado a dormir naquele pequeno sofá velho, esperando ansiosamente que a mãe acorde. Os médicos dizem que a medicação é o motivo de ela ainda não ter acordado, mas Aline pensa, no seu ínfimo, que a mãe não quer acordar e olhar para a sua família, sabendo que qualquer dia pode ser o último.

Aline encontra-se agora perante uma máquina de comida a olhar para os produtos alinhados em várias filas numeradas. Talvez não saiba se hoje deva escolher algo mais saudável para compensar as batatas fritas que comeu ontem ao jantar. Sendo esse o motivo ou não, pressiona o botão com o número 7 inscrito a vermelho, insere alguns trocos na máquina e uma maça verde e, provavelmente, brilhante demais, rola até à cavidade inferior. Apanha-a e dá-lhe a primeira trinca. Sabe-lhe tão bem que nem pensa nos possíveis químicos que lhe foram adicionados.

Volta ao quarto da mãe, esperando vê-la a dormir como quando a deixou. E assim estava. Olha para a janela pela primeira vez em dois dias e o mundo lá fora encontra-se assustadoramente igual. As mesmas árvores no mesmo jardim, as mesmas ambulâncias em frente ao hospital e as mesmas pessoas a correr com esperança de chegar perto dos seus entes queridos antes de estes partirem. Obviamente, não são as mesmas pessoas nem as mesmas ambulâncias. Mas é o que lhe parece. Em facto, as pessoas de há dois dias e as de hoje, aparentemente semelhantes daquela janela, eram movidas por diversos sentimentos e por razões e pessoas diferentes e as ambulâncias, à primeira vista idênticas, diferenciavam-se pelas matrículas. Mas o que são estes pequenos detalhes num mundo como este? Pequenos detalhes. E ninguém quer saber ou ninguém quer saber ao ponto de realmente notá-los. São meras pessoas, certo? São apenas ambulâncias, certo?

Errado.

Mas ela notou, porém, fingiu que não. Fingir que tudo estava igual como antes permitia-lhe acreditar que assim estaria a sua mãe. Mas nada permanece igual para sempre, tudo é temporário.

Sai do quarto mais uma vez e, vagarosamente, dirige-se até às escadas e senta-se num dos degraus frios. Começa a contar o número de pessoas que por ela passam. Por mais estranho que possa parecer, não são muitas. O elevador em nada tem a ver com o baixo resultado numérico, pois, como diz o papel colado nas portas do mesmo, está avariado. A verdade é que o andar número 3 corresponde a um estado de passagem. Pelas suas espreitadelas, Aline não demorou a perceber que a maioria dos pacientes daquele andar estava a morrer e ninguém fazia nada.

Não haverá nada a fazer?

A pergunta não deixava a sua mente e a dor era incompreensível. A dor não provinha da pergunta, ela sabia. Provinha da apavorante resposta.

Não.


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