Você Não Me Engana

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O resto da nossa tarde é tranquila. Aviso o pessoal na horta que estou encarregado de guiar o novato hoje. As pessoas trabalhando dão um oizinho com a mão de longe para ele. A retribuição do cumprimento apenas com um aceno de cabeça geral para a galera indica que Miguel ainda está irritado por causa do lance da limpeza.

– Fica frio, cara. Pensa que é só por alguns meses. – Tento parecer otimista. É uma técnica boa e sempre funcionou, mas não com ele.

– Alguns meses? Não são alguns meses. – Ele dá ênfase nas palavras. – São seis meses. Seis!

– Eu sei, mas pensa que esse é o trabalho que ninguém quer fazer. Para quem você acha que eles atribuiriam?

– Óbvio que para a minha falta de sorte.

– Ei... – Cutuco o braço dele com o meu cotovelo. – Não é por causa da sua sorte, é só porque você é um recém-chegado. Eu já passei por isso também quando entrei. Vai passar rápido, confia em mim.

– É o que eu espero.

Na hora do jantar, Miguel já está mais relaxado. Ele ri das piadas de Pedro – coisa impossível de não se fazer – conta para as meninas sobre a tarefa, pergunta a quanto tempo elas estão aqui, e como é morar comigo. O momento mais embaraçoso é na última pergunta, quando meus amigos começam com as brincadeiras.

– Ele é sonâmbulo, sabia? Tranque bem a porta do quarto antes de dormir! – Pedro diz.

– Ah, não se esqueça da cantoria quando ele está no banho. – Marcela ri, enquanto simula um microfone com o garfo.

– E ele é bem atrapalhado. – Ilda faz uma careta enquanto fala. – Se acostume com ele esbarrando com tudo que tem pela frente... – Ela faz uma pausa. – E pelos lados!

Eu reviro os olhos para eles e rio em seguida.

– Parem de assustar o garoto! – Balanço a cabeça e volto meu olhar para ele. – É tudo mentira isso daí. – Pedro me lança um olhar inquisidor. – Tudo bem, talvez a parte do chuveiro seja verdade. – Todos riem da situação.

Depois do jantar nós vamos cada um para a sua sala de reunião. Eu deixo Miguel na dele antes de me encaminhar para a minha. Como meu tempo na instituição é grande, há poucas pessoas na sala, pois o pessoal sempre sai quando se acha "curado". Difícil encontrar integrantes com a mesma duração que eu tenho aqui.

Hoje a palestra é sobre o bem de conviver em sociedade. Algumas vezes o tema é repetido, eles só mudam o título, mas o conteúdo é o mesmo. E como eu estou aqui há um bom tempo, já ouvi de tudo. Esse é um dos casos, pois os temas "Relacionamento interpessoal", "Convívio e bem-estar" já passaram por aqui várias e várias vezes.

Eu penso nas palestras como sendo aulas. Ou talvez doutrinas. Pensamentos e comportamentos que a administração espera que tenhamos, mas que são passados através de slides como sendo o certo, ao invés de exigidos. Talvez por isso eles falem tanto do nosso relacionamento com os colegas. Tudo para um fim maior, claro.

Ouço as mesmas palavras sobre como é importante a relação com as pessoas no dia a dia. Sobre como todos têm uma história diferente da minha, coisas para compartilhar, ensinar e aprender. Sobre como ninguém vive sozinho e que o complexo humano é difícil de entender e de lidar, mas que cada um precisa fazer a sua parte.

Durante toda a uma hora da palestra eu encaro a senhora Olga, mas as palavras dela já estão tão batidas na minha mente que não consigo vejo a necessidade de aprender sobre o que eu já sei. Meu pensamento vaga para duas salas à minha frente e eu imagino a cara entediada de Miguel por todo o momento que está sentado lá. A imagem de ele querer surtar e sair correndo me faz rir.

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⏰ Última atualização: Aug 13, 2016 ⏰

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