Capítulo 1

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CLARISSE

É dona Clarisse Martinez, finalmente tomou a decisão correta. Uma mulher de trinta e três anos, solteira, futura empresária, loucamente apaixonada por praia e por esse paraíso chamado Morro de São Paulo, não podia mais deixar que outras pessoas comandassem sua vida – balanço a minha cabeça para parar com essa conversa comigo mesma. Eu só posso estar louca. Estou parada de frente para a janela do meu quarto olhando essa imensidão de águas claras e pensando por que eu demorei tanto para tomar essa decisão de vir embora para esse lugar que tanto amo. Parei para refletir por tudo em que passei desde os meus seis anos de idade e posso dizer que não foi nada fácil, percebo que alguém lá em cima gosta muito de mim. Cada etapa da minha vida foi uma sobrevivência, um aprendizado que eu levarei sempre comigo.

Sou tirada dos meus pensamentos pela pessoa que amo mais que tudo.

— Minha filha, o que tanto anda pensando? — pergunta, se aproximando.

— Em tudo que passei na minha vida — falo, sem desviar o meu olhar da imensidão de águas claras.

— Eu sei que não foi fácil passar por tudo, mas isso já é passado e você tem uma nova oportunidade para recomeçar da maneira que você quiser.

— É tudo que eu mais desejo Neidinha e sei que vou conseguir, mas não é fácil de esquecer. — Viro-me para olhá-la e dar um abraço bem apertado na pessoa que eu considero como a minha mãe.

— Oro todos os dias para que esse seu sofrimento passe! Cla, tenho você como a minha filha. Te conheço desde quando você nasceu e sei de todos os seus sofrimentos, todas as alegrias e conquistas, sei o quanto você é forte, então use sua força para lutar pelos seus sonhos. Chegou a hora de deixar tudo para trás e seguir em frente.

— Você tem toda a razão, Neide! — Dou-lhe um beijo na bochecha. — Tenho você como uma mãe. Você e Cris são as únicas pessoas que me conhecem muito bem. Só tenho que agradecer tudo o que fizeram por mim.

— Eu que tenho que agradecer ao senhor Matheus por ter me contratado e ao senhor Ítalo por ter me recontratado e assim poder ficar bem perto de você.

— Você sabe que eu te amo, não é, Neide? — Faço um carinho no rosto dela.

— Eu também te amo, minha bonequinha.

Afamília da Neide trabalha há muito tempo com a minha família por parte de pai.Quando eu nasci, os meus pais já tinham a Laura. Foi aí que Neidinha e Samuelforam trabalhar na casa dos meus pais, Neidinha como nossa babá e

Samuel como jardineiro. Morávamos todos em Valença, uma cidade do interior da Bahia.

Quando os meus pais se separaram, eu tinha uns quatro anos e Laura seis. Nossa mãe, Laura e eu nos mudamos para Salvador. A minha mãe e minha irmã não gostavam de morar no interior, queriam ir para a cidade grande e foi aí que me separei da Neidinha.

Carinho de mãe, só conhecia o da minha avó paterna e da Neidinha. Quando minha mãe se casou com Ítalo, eu já tinha seis anos, foi quando adoeci.

A rejeição foi imediata pela minha mãe e irmã, pois eu só iria ser um encosto para as duas. Eu não tinha movimentos das minhas pernas e as duas só queriam saber das pessoas da alta sociedade de Salvador. Essa era a criação que a nossa mãe nos dava, o que importava era o dinheiro e nada mais.

O tratamento ficou por conta do meu pai e Ítalo . Os dois se uniram em prol da minha recuperação. No início, o meu pai queria pagar tudo sozinho, mas Ítalo se sentia responsável por mim, pois eu morava com ele. Então os dois se sentaram e conversaram. A decisão era que os dois dividiriam todas as minhas despesas.

A ideia de contratar Neidinha foi do meu pai, ela e sua família se mudaram para Salvador com a filha, Cristina. A nossa amizade foi instantânea, na época da minha doença, eu não podia andar, ficávamos na cama brincando. Minha mãe os rejeitava por serem negros, mas Ítalo, sempre estava na defesa deles. Todas as minhas batalhas e conquistas eles estiveram ao meu lado.

Passei dois anos sem andar, perdi dois anos da minha vida em cima de uma cama, mas nada me abalava. Quase todos estavam ao meu lado, exceto dona Ângela e Laura. É inaceitável ficar chamando Ângela de mãe, então evito. Enquanto estava acamada, ela estava em festas.

Sinto lágrimas escorrerem pelo meu rosto. É muito triste ficar pensando nisso, acho que se não fosse essas pessoas estarem ao meu lado, eu não estaria mais aqui.

Solto um suspiro longo quando sinto os polegares da Neidinha secando as minhas lágrimas.

— Ei, nada de choro. Eu quero um sorriso lindo nesse seu rosto.

— Você tem toda razão. Chorar dá rugas e estou nova para isso. – Neidinha cai na gargalhada.

— Você tem toda razão, minha menina.

— Acho que está na hora daquele café que só você sabe fazer! — Ela sai dos meus braços e planta um beijo carinhoso na minha bochecha.

— Eu vim te chamar para isso. Tem uma linda mesa de café da manhã e uma surpresa para você.

— E por que você não me disse isso antes, Neidoca? Vamos que eu estou morrendo de fome e curiosa para saber qual é a surpresa!

Saio arrastando Neidinha pela mão para ir à cozinha e me deparo com uma linda mesa de café da manhã. Quando eu viro para falar com a Neide, uma sombra entra no meio de nós duas com um olhar de brava e fala.

— Quem era que ia me ligar quando chegasse aqui? É assim que estava com saudades de mim? É assim que me considera como amiga? O que foi? Cortaram a sua língua?

— Larga de drama, Cris. Respondendo às suas perguntas, eu precisava ficar um pouco sozinha e por isso não liguei. Eu estava morrendo de saudades de você, quer dizer, de vocês. Realmente não te considero como uma amiga, mas sim com uma irmã. E não, ninguém cortou a minha língua — respondo as suas perguntas olhando nos seus olhos que estão cheios de lágrimas. Puxo Cris para um abraço cheio de saudade.

— Seja bem-vinda, Cla!

Afasto-me dos seus braços com os olhos cheios de lágrimas e digo:

— Você não sabe a falta que me faz Cris! Mesmo em contato pelo celular e aplicativos, nada substitui os seus abraços. Não sabe o quanto precisei deles pelo tempo que ficamos afastadas. Deixa-me matar mais a saudade dele, me abraça Cris.

Não sei quanto tempo ficamos abraçadas de olhos fechados. Quando abro meus olhos me deparo com aqueles olhos cor de mel analisando a cena, separo-me da Cris e vou correndo para os seus braços.

— Ai, Samuel! Quanta saudade de você.

Sou abraçada com força e dessa vez eu sei que estou em família novamente.

— Minha pequena! Também senti bastante saudade de você. Quando a Neide me contou que você estava aqui eu não acreditei, não via a hora de chegar aqui e te ver com meus próprios olhos.

Depois que eles foram embora de Salvador e resolveram vir morar em Morro de São Paulo, meu pai os contratou como caseiros da casa que herdei dos meus avós paternos. Mas sem nada para fazer, Samuel virou pescador e Neidinha trabalhava como diarista.

— Eu vim para ficar, Samuca. Nada e ninguém vai me tirar desse lugar, quer dizer, só Deus. — Dou um sorriso. — Não aguentava mais ficar lá depois dos últimos acontecimentos. Ou eu saía urgente ou eu não sei o que teria acontecido.

— Seja bem-vinda! E pode contar conosco, estaremos aqui com você, não esqueça que consideramos você como nossa filha.

O nosso momento é interrompido com uma Neide muito brava.

— Será que eu vou ter que fazer outro café? Vamos passar logo para a cozinha, antes que eu tire a mesa e vocês fiquem com fome.

Sentamo-nos à mesa para saborear o delicioso café e colocar as conversas em dia. Olho para todos com um ar de certeza que estou no lugar certo, ao lado da família que escolhi para mim.

Um novo dia, um novo recomeço (DEGUSTAÇÃO)Onde as histórias ganham vida. Descobre agora