- Com licença,Daniela Brandão é a senhorita? - Um homem alto,careca, na casa dos 40 anos,vestido de forma relativamente elegante me abordou enquanto eu ainda discutia com Fátima sobre a importância da higiene na cozinha.

- Sim senhor eu mesma.Em que posso ajuda-lo?

-Bom dia,meu nome é Marcelo,eu sou o gerente do departamento de engenharia. Não sei se a senhorita conhece os procedimentos da nossa empresa,mas nós temos uma equipe de funcionários com deficiência visual que fazem as refeições antes dos demais empregados,sabe como é,é importante trata-los de forma diferenciada.A sua equipe poderia servir o almoço para eles as 11 horas?

11 horas?

Meu deus do céu,ninguém tinha me avisado nada disso,eram 10 horas,metade do cardápio ainda estava cozinhando,todo meu planejamento estava indo por água a baixo.Tentei argumentar:

- Senhor,eu não tinha conhecimento desse fato,como pode ver ainda esta tudo cozinhando,não sei se conseguiremos entregar tudo até as 11 horas - Eu disse com o tom de voz suplicante pedindo aos céus para que ele fosse legal comigo e me desse um prazo maior.

- Entregue o que estiver pronto até as 11 horas.Não há necessidade de servir a eles o cardápio todo,só lhes de algo que possam comer - Ele falou de um jeito que transbordava descaso,tentei não transparecer nenhuma reação mas acho que meu rosto me denunciou pois quando ele olhou para mim novamente emendou - Não me entenda mal,são as normas da empresa,além do mais,pense nisso como um benefício,eles vão se alimentar antes dos outros funcionário.

Deu uma risada amarela como quem se explica, se despediu e partiu rapidamente,me deixando mais desesperada do que nunca.

Por mais que eu tenha me esforçado e minha equipe tenha se desdobrado em duas para conseguir completar todo o serviço até o novo horário que o gerente pediu,não tínhamos conseguido terminar todos os pratos em uma hora.Servimos o que havia ficado pronto naquele momento, e, apesar de não ser minha função, fui até a mesa deles me desculpar pelo ocorrido.

Quando me aproximei da mesa pude contar que o número de funcionários com deficiência era pequeno,em torno de 10 no máximo,na sua maioria homens,continuei seguindo até chegar na frente deles e disse em voz alta:

- Ola,me chamo Daniela,sou a nutricionista responsável e eu sinto muito por não ter entregado todos os itens do cardápio a tempo,eu realmente não fazia idéia que o almoço de vocês era servido antes - Me curvei como quem pede desculpas e notei que não era necessário,ninguém ia ver mesmo.

- Não tem problema,já estamos habituados a trabalhar com pessoas que não fazem idéia das nossas necessidades - fui surpreendida pela voz de um rapaz que aparentava ter uns 26 anos,era alto,esguio,cabelo castanho um pouco comprido e barba por fazer,tinha uma pele oliva e bochechas rosadas mais do que o normal.Usava um óculos escuro que cobria parte de seu rosto e se vestia de maneira simples.Se eu o tivesse conhecido em outra ocasião diria que ele definitivamente era o tipo de cara que ia mexer comigo mas o tom de voz dele naquele instante me fez recuar.

- Artur,não fale assim com a moça,não é culpa dela que esses bastardos acham que temos que comer na hora do café da manhã - Um homem de meia idade,um tanto quanto acima do peso disse em tom de brincadeira para amenizar o clima que havia se instalado - Não ligue para ele mocinha,engenheiros são todos chatos mesmo -Usou um tom despreocupado, e eu fiquei muito grata por isso,ele usava os mesmos óculos do tal Artur, mas se vestia de maneira bem mais formal.

- Eu imagino,quero dizer,com toda aquela matemática,quem poderia ficar feliz não é mesmo? - Eu usei o mesmo tom que o senhor havia usado comigo e algumas pessoas da mesa riram,exceto Artur,que se eu não soubesse que era cego podia jurar que estava me analisando.Me virei em sua direção e disse:

- Me desculpe,realmente não era minha intenção,prometo que amanhã isso não se repetirá - Eu disse e não esperei pela sua resposta, até porque analisando seu semblante carrancudo pude notar que ele não iria me responder mesmo.

Continuei com minhas tarefas,mais apressada do que nunca,a cozinha era um verdadeiro caos e assim o dia se passou sem maiores surpresas mas como sempre com muito trabalho a fazer.

Como eu tinha sempre que verificar se tudo estava na mais perfeita ordem para que o trabalho fluísse bem durante o dia,ficava até tarde conferindo as mercadorias que os fornecedores traziam até que fui surpreendida por Artur que estava parado na minha frente o que me assustou de imediato.

- Oi - eu disse incerta - O que faz aqui?Esta perdido ou algo assim?

Artur riu sem humor,seu rosto aparentava cansaço,como se ele já estivesse mais do que habituado a ouvir aquele tipo de pergunta.

- Só porque eu sou cego não significa que eu não sei onde vou,afinal,trabalho aqui a mais tempo que você - Ele respondeu de um jeito que eu podia jurar que era de quem havia se magoado com o que eu havia dito - Eu vim aqui para me desculpar pelo meu comportamento de hoje cedo é só isso. - E começou a se retirar,mas eu o detive.

- Espera -eu falei um pouco mais alto - Me desculpa eu só queria ajudar,não ouvi você chegando. Você não pode me culpar por não saber como agir perto de pessoas como você - Depois que proferi a frase que percebi a besteira que havia feito - hm,quero dizer,pessoas com deficiência,sabe,eu não sei como agir,eu não sou preconceituosa nem nada eu só...

- Não sabe como agir perto de pessoas como eu?- percebi pela enfase que ele deu em minha frase mal colocada que ele não havia gostado nem um pouco do conteúdo dela - é simples,me trate com respeito,não tem segredo - disse de um jeito debochado,por debaixo dos seus óculos podia ver a expressão de escárnio que me lançava,aquilo que me magoou de uma forma inesperada.Eu não era má pessoa,não merecia um tratamento daqueles.

- Eu sei, eu só quis dizer que... - suspirei,não sabia como responder aquilo,eu e minha boca grande - Eu aceito suas desculpas de hoje cedo se aceitar as minhas agora.Não foi minha intenção te ofender.

- Nunca é a intenção de ninguém ofender - ele respondeu e foi fazendo seu caminho com a bengala para fora dali me surpreendendo com a segurança que ele andava.Mas mais do que surpresa no momento eu estava me sentindo chateada.O bolo na garganta começando a tomar forma.

Porque eu estava me sentindo assim afinal de contas?Eu nem o conhecia,provavelmente era a culpa batendo na minha porta por ter soado preconceituosa o que eu absolutamente não era,eu devia era estar sentindo raiva dele isto sim,eu havia sido gentil a todo momento e ele veio querendo me ofender.Que sujeitinho petulante querendo me culpar pela condição dele,ora essa que culpa eu tenho que ele é cego? Todos temos dificuldades na vida não?Ele que fosse descontar a raiva dele em outro lugar.

Encerrei meu expediente com isso em mente, e enquanto pegava o biarticulado lotado que me levaria para casa,fui pensando se Artur pegava o ônibus sozinho,se fosse esse o caso será que alguém cedia o lugar para ele, e de repente me vi fazendo suposições de como seria a vida de uma pessoa completamente estranha para mim.


O amor é cegoWhere stories live. Discover now