A primeira fase

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O vento gelado do rio batia contra os cabelos de Luna, que andava calmamente pela borda de concreto que separava a água da terra. Os seus passos ecoavam pela escuridão da noite enquanto a lua cheia brilhava no céu negro, refletindo sobre o flumen. Luna, com o seu andar sereno, vagava amargurada, e acreditava que ali deveria ser o seu fim. A garota vivia fugindo do seu exílio, mas era inevitável não seguir o que os seus sentimentos mandavam.

Pusilanimidade tomava conta de sua mente enquanto a solidão percorria o seu coração numa súbita batalha entre a razão e a emoção, e Luna só queria que aquelas sensações saíssem de dentro do seu peito, mas ela sabia que isso não era possível naquele momento. A verdade era que Luna estava cansada de sofrer calada. Todas as palavras de socorro foram ignoradas, e os pedidos de ajuda foram guardadas dentro de si com um sorriso fingindo a felicidade. Para ela, era mais fácil mentir um deleite falso do que uma amargura verdadeira, já que a melancolia é sempre rejeitada. A garota vivia ouvindo as vozes das pessoas ao seu redor lhe dizendo que tudo não se passava de coisas da sua mente adolescente, e isso fez com que ela se enganasse. Mero erro.

Ela se sentia diferente. Seu corpo havia mudado, seus desejos eram outros e as suas vontades não eram compatíveis com a sociedade em sua volta. Luna só tinha vontade de ser criança novamente, onde a inocência pregava a sua alma e suas utopias eram iluminadas pelos devaneios. Adorava recordar do seu sonho de ser astronauta. Vivia deitada no gramado de sua casa na noite estrelada para olhar a lua, e aquele sempre era o seu momento preferido do dia. Ela não sabia como, mas entregava a sua consciência para outro mundo, e viajava pelo espaço.

E agora, contemplando a luminosidade da lua brilhando contra o rio, ela teve vontade de ficar naquele cenário para sempre. O vento reconfortante fazia com que os pelos do seu corpo se arrepiassem, e ela queria o arbítrio de sentir aquilo entrando profundamente por cada poro de sua pele. Luna se sentou na viga de tijolos e observou o rio, do qual corria calmamente o próprio percurso. Assim como aquelas águas, Luna também desejava ser livre, mas não era possível. Não mais. Na verdade, Luna almejava ser muitas coisas. Ela já pensou em ser como o vento ou como uma simples flor na primavera; já se imaginou pintando um quadro e expressando os seus instintos; já se viu sendo médica, professora, veterinária e diretora, mas nada era comparado a vontade de ser a lua.

Luna se identificava com cada fase, e já passou por todas. Assim como a lua nova, Luna quis eclodir e sair do apagão, indo para a crescente. Suas ideias estavam mais claras, e ela estava descobrindo si mesma. Na lua cheia, quis sair do anonimato. Dizer para a sua família sobre a sua sexualidade foi a coisa mais difícil que enfrentou, mas ela estava mais certa de si do que tudo, e pensava que nada a deixaria para baixo, mas isso foi um engano. Logo em seguida, a lua minguante a pegou de surpresa, junto de uma fase escura que era o contrário de tudo o que já havia passado, e teve que enfrentar o seu pior medo, a pior parte.

Luna odiava falar o nome dessa etapa, mas era inevitável. Ela a chamava de eclipse, onde tudo se unia num único conjunto de ira. O fim de um ciclo acontecia nesse momento, e ela queria chorar, gritar e expulsar todas as vozes que envolviam os seus pensamentos, mas nada acontecia. Ela já estava acostumada com o sufoco de suas afecções, e não sentia mais nada além de uma vontade imensa de ter o seu corpo inteiro afundado pela água gelada que batia em seus tornozelos.

Relutante com a nova ânsia, Luna se levantou e observou a correnteza se mover enquanto o fluido era um barulho entorpecente para seus ouvidos. A garota fechou os olhos e imaginou estar pisando na lua, onde não havia ninguém além de si mesma num espaço sem regras. Pela primeira vez ela se sentiu bem, e reconheceu que ali poderia ser o seu fim. Ninguém ditava as normas para ela, que corria livremente pela gravidade do espaço. Ao mesmo tempo, a gravidade de seu ruir era enorme no mundo real, e o seu corpo fracassava conforme ficava embriagada nas suas divagações. Com os olhos fechados, Luna não percebeu o quão decaindo seu corpo estava, e acordou quando sentiu um toque confortável em seus ombros lhe puxando para trás antes que encontrasse com o rio.

— Você tem em mente o que vai fazer!? — uma voz disse num tom alto. Luna sorriu com a entonação, que era como uma música clássica para seus ouvidos.

Luna só conseguia sorrir. Ela achava que estava no céu, e que aquela garota era o anjo mais bonito que poderia existir. A sua pele branca contrastava bem com seus cabelos pretos e lisos, junto de seus olhos cor de mel.

— Eu só... Talvez apenas estivesse observando a luna — disse Luna, que se arrependeu logo em seguida. — Meu nome é Luna.

— Luna na lua. Você só pode estar brincando — rebateu. — Me chamo Sol.

E então Luna sorriu. Ela não sabia ao certo como descrever o que estava sentindo, mas talvez aquele sol fosse o que estava faltando para o sistema funcionar perfeitamente. Seus lábios ficavam cada vez maiores de alegria, formando um riso que durou por pouco tempo ao lembrar da sua realidade.

— Eu não posso mais... — Luna começou, mas não foi capaz de continuar.

Sol continuava com um olhar de interrogação, e queria entender os motivos de Luna. Elas caminharam em direção a um banco que havia de frente ao riacho, e se sentaram para observar a negritude da noite. Luna não parava de olhar o céu estrelado, e sorria internamente ao ver suas constelações preferidas. Já Sol, não conseguia parar de olhar para a garota dos cabelos roxos, e queria entender cada vez mais os seus motivos, porém, ela sabia que isso levaria tempo.

— Eu vivo em outro mundo, Sol — a garota dos cabelos roxos divagou. — Eu não me achei nessa vida ainda.

— A partir do momento em que você conhecer a si própria, verá que nada poderá te afetar — Sol indagou colocando suas mãos macias sobre as de Luna. —  Você perceberá que nada mais importará, e vai viver por si mesma.

Luna não conseguia entender como que ela havia acertado no pensamento, mas Sol havia resumido o que sentia. A garota precisava revelar que gostava de meninas, e que não pensava em se casar como se aquilo fosse uma regra da vida. Luna queria conhecer o mundo, ser livre, não ter compromisso e descobrir coisas novas; queria mostrar o seu brilho para as pessoas e dizer o quão igual a todos ela é.

Sol havia compreendido o que Luna estava querendo dizer apenas com um olhar que trocaram, e nesse momento souberam que poderiam se completar mais do que peças diferentes de uma única máquina. Elas se olhavam com a alma, e o silêncio era um complemento a mais no momento. Luna estava com vontade de abraçar Sol e dizer obrigada, e foi isso o que ela fez.

Quando os dois corpos se encontraram, uma eletricidade passou por partículas entre elas, e não havia física que explicasse o quão certeiro aquilo foi. Sol descobria um novo sentimento que nunca havia passado dentro de si, enquanto Luna queria se perder no tempo e se agarrar no corpo da garota que acabou de conhecer. Mas isso não aconteceu.

No momento em que se separaram, não tiveram coragem de se encarar. Luna percebeu então que passou a vida inteira desacreditando no amor no primeiro contato, mas estava vivendo um naquele exato momento. Palavras não ditas não fizeram falta naquele segundo quando sorriram uma para outra, e sabiam que aquilo não iria acabar por ali.

Sol estava assustada com essa nova atração, pois nunca imaginou que um dia iria se interessar por uma garota, mas Luna, com toda a sua singularidade, fez com que ela se encantasse. Em pouco tempo, já pensava no seu sorriso, e queria fazer com que aquele largo riso se estendesse por dias, tirando todas as tristezas que havia dentro de seu coração. Luna queria fazer o mesmo por Sol, e logo tratou e tomar a iniciativa de pegar o seu número.

— Eu não quero perder o que aconteceu hoje, e eu não sei o que isso tudo é — Sol desabafou, o que soou como a mais pura verdade.

— Então vamos descobrir juntas — Luna completou seu pensamento, sorrindo logo em seguida e pegando em suas doces mãos.

Naquele instante, Luna percebeu que podia ser o suficiente para apenas um alguém, e não iria pedir mais do que isso. Uma pessoa que a entendesse era o suficiente para ajudá-la na depressão que passava.

— Você sorri com a lua minguante nos lábios e a lua cheia no olhar — Sol disse entre dentes, tirando um riso relaxado de Luna.

Ela queria ser a lua, mas era apenas a Luna, e Sol gostava daquilo.

continua...

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