Parte I - Expulsão

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Era a primeira vez que eu assistia à expulsão

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Era a primeira vez que eu assistia à expulsão.

O réu era Ruk. E Ruk era meu irmão.

Como shenlong, acredito que todos somos irmãos em jornada. E para Ruk e eu, essa era uma forte verdade até então. Eu o conheci ainda criança, antes mesmo de chegarmos em Shanjin. Eu subira na carroça que passava pela estrada em direção ao norte, tentando viajar de graça sem ser notado. Ruk, no entanto, chegara antes e já estava escondido em meio aos barris de cerveja e lonas de couro. Brigamos pelo espaço e, por fim, o condutor nos expulsou. Não havia nada por perto. Caminhamos o dia inteiro sob o sol, sem água ou comida, até chegarmos à cidade mais próxima.

Nunca mais nos separamos.

Os pais dele haviam sido mortos por bandidos da montanha. Eu nunca conheci os meus. Dormíamos onde permitiam; comíamos o que nos davam; e pegávamos o que sobrava. Até roubamos quando foi necessário.

Um dia, enquanto tentávamos levar a tigela de moedas de um shenlong, acabamos no Templo da Montanha, Shanjin. Por muito tempo não entendi como aconteceu. Em nenhum momento o monge nos obrigou. Nós simplesmente o seguimos, primeiro pela cidade, depois pela estrada, depois por outras cidades e outras estradas até aqui, e aqui ficamos, como se já pertencêssemos ao local. Na época, eu tinha sete anos, Ruk seis, e mais de quinze anos passaram desde então.

Agora, meu irmão estava ali. Ajoelhado. Seus dedos percorriam as contas do rosário na mão esquerda. Era difícil ler a expressão em seu rosto, mas parecia resignado. Os olhos, sempre vivos, refletiam as chamas das lanternas de pedra do pátio externo. A yantra gravada com a figura do cavalo em suas costas estava desbotada. Por diversas vezes eu vira Ruk treinar, executando formas onde aquela imagem esteve prestes a ganhar vida e saltar da pele. Difícil acreditar que eram a mesma pessoa.

Somente shenlongs graduados podiam participar da expulsão. Os mais de cinquenta monges presentes formavam um semicírculo em torno de Ruk, vedando-lhe a entrada do templo. O simbolismo era claro: "Nós agora impedimos sua passagem". O silêncio e a luz fraca tornavam a noite mais intensa.

Ruk sempre fora inquieto. Gostava de sair escondido de madrugada para jogar e beber em Vila da Mata. Não era o único, claro, muitos monges faziam isso. Eu mesmo já estivera no vilarejo diversas vezes em comemorações. Todavia, a frequência começara a incomodar. Na maior parte do tempo, os superiores faziam vista grossa contanto que cumpríssemos as obrigações no dia seguinte. E, apesar de tudo, Ruk cumpria. Não só realizava as tarefas como ainda se destacava nos treinos. Até mesmo Shizu o elogiara em sua forma das quatro estações; o que, todos sabíamos, significava muito vindo de Shizu.

Mas desta vez era diferente. Ruk havia matado um homem.

Entrara numa confusão no restaurante do vilarejo, quando Yat mexeu com a filha do dono. Enfurecido, o homem partiu para cima deles com um cutelo. Ruk o matou; segundo ele, por acidente, enquanto tentava se defender. Os aldeões, irritados, perseguiram os dois shenlongs. Yat foi morto. Ruk conseguiu escapar, retornando a Shanjin. A Barreira na floresta fez com que os homens de Vila da Mata não conseguissem segui-lo. Todos os aldeões se perderam na montanha procurando pelo Caminho da Serpente. Logo que retornou, os outros monges perceberam que havia algo errado. Então, Abade Kame foi chamado.

A Canção dos ShenlongsWhere stories live. Discover now