Capítulo 1

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        A sociedade caminhava para o século XIX, muitos varriam suas bandalheiras para debaixo do tapete. Se fosse mais grosso melhor, pois caberiam mais partes obscuras do que alguém poderia desejar esconder. Carmelita nunca imaginou-se fazendo parte desse grupo seleto de salafrários,porém tinha um segredo que não seria perdoado ou aceito tão facilmente pelas pessoas da época. Levantou-se da cama lentamente, pisou no chão com cuidado para não acordar o marido que dormia há longas horas. O ronco petulante não permitia que pegasse no sono, a inquietude acelerou o coração da moça em desgostosas lembranças. Seguiu pelo corredor escuro apalpando a parede para evitar tropeçar.

Em uma das mãos levava um suporte onde jazia uma singela vela quase sem vida que já não iluminava em grandes proporções como outrora. Da janela aberta soprou um vento gélido e desconfortante que fez escorrer uma gota de lágrima dos olhos da doce dama. Era inevitável não pensar nele, não lembrar-se do toque, do olhar... do beijo. Só iria reencontrar Santiago em aproximadamente trinta dias, pois havia viajado para outro país com o objetivo de fechar a venda de algumas sacas de café da fazenda de seu pai. Santiago...o nome ecoava na mente de Carmelita, enchendo o coração de saudade e ainda mais paixão. O amante era viril, jovem, completamente diferente do homem que ela havia se casado.

Delicadamente passou os dedos pelos olhos, enxugou as lágrimas que esparramavam-se como o amor fez no coração dela. Precisava ser forte. Colocou o cotoco de vela em cima da escrivaninha antiga da sala de estudos e olhou-se por um instante através do espelho que ficava em cima desta. Observou que seus olhos não possuíam mais o brilho da juventude que dantes apreciava. Dirigiu-se até a sacada, permitiu que a brisa brincasse com os fios de cabelo e aliviasse o peito que gritava por conforto. Aquela ocasião lhe entregava o alfinete de liberdade que sempre almejou. Tinha pouquíssimas amigas, no mais o marido também não permitia que saísse muito da residência. Ao fechar os olhos as imagens pareciam vivas, borbulhavam na mente e ela perguntava-se onde poderia estar o dono do amor tão grande que sentia. Sentou-se na cadeira acolchoada de veludo bordô, retirou do espaço entre os seios um molho de chaves e abriu a gaveta da escrivaninha com apenas um volta. Era lá que guardava o diário secreto que a acompanhava desde os primeiros anos de casada.

Quando avistou a gaveta completamente vazia, o coração farfalhou, a garganta secou e as pupilas mantiveram-se dilatas refletindo o medo que provocava zumbidos em seus ouvidos. Quem poderia ter apoderado-se daquele diário? Por quê? Nenhuma outra pessoa tinha as chaves daquela gaveta, somente ela. As únicas pessoas que sabiam da existência da caixinha de segredos de Carmelita eram Maria Eugênia, a melhor amiga, e Lurdes, a criada de confiança. Ao pensar que o conteúdo do diário pudesse ser revelado ficou em frangalhos, não poderia permitir-se total humilhação. E se Abílio, marido dela, descobrisse... estaria morta.

-Oh Deus! Não permita que...

-Que a mulher com que convivo há mais de oito anos e que tenho prazer de chamar de minha esposa não passe de uma meretriz?- gritou o marido que  jazia atrás dela com olhos enfurecidos e o diário mediano de capa dura e negra na mão.

-Mas como?- pronunciou quase que inaudível. Carmelita cobriu a boca com uma das mãos tentando esconder não somente o susto, como a vergonha.

-Pensou que poderia continuar me fazendo de tolo por quanto tempo? Sua vagabunda!- vociferou Abílio caminhando com passos pesados, carregado de ira.

-Abílio, eu...nunca tive a intenção de...

-Cale-se! – gritou, aproximando-se ainda mais da esposa e continuou a falar olhando no fundo dos olhos dela de forma totalmente sufocante. – Pensou que nunca iria descobrir que você vem me traindo com meu próprio filho, seu enteado, há mais de três anos?- questionou, porém não obteve nenhuma resposta da mulher, apenas conseguia visualizar lágrimas escorrendo rapidamente dos olhos dela. Virou-se atordoado, banhado por uma chuva de raiva. Afastou-se, passou as mãos pelos cabelos, soltou um grito gutural de dor. O peito pesava mais que uma âncora enferrujada atirada em alto mar.

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