Capítulo único

137 28 75
                                    


Bati a porta e rumei em direção às escadas. Precisava extravasar toda a energia que ainda se mantinha acumulada entre o peito e a garganta e se reusava a ir embora, me deixando cada vez mais pesada. Apenas um lembrete do que me fazia mal. 

Abri a porta da saída de incêndio e corri tendo plena consciência de que daquele momento em diante não haveria volta. Não que achasse que me arrependeria dali a um minuto, um dia, uma semana ou duas. Não iria, e essa era uma das poucas vezes que me atrevi ter certeza na vida. Primeiro que não era do tipo que toma decisões impulsivamente. Racionalizava, deixava as coisas fluírem naturalmente e racionalizava mais um pouco. E, pode ter certeza, não deixava espaço para nenhuma alternativa fugir antes de tomar uma decisão. 

O segundo ponto era: se por acaso você tirasse um passarinho de seu habitat natural para prendê-lo numa gaiola, e depois de um tempo ele finalmente conseguisse se soltar... Algum dia ele pararia para refletir e sentiria saudades da época em que era apenas um prisioneiro? Se alguém respondesse "sim", o chamaria de filho da puta iludido, sem pena.

Desacelerei o passo quando saí do prédio, fitei o céu e vi que o mesmo tinha se transformado num emaranhado de nuvens negras, que neste mesmo momento começavam a rugir, deixando claro que em breve derramariam a sua revolta por completo. Apressei o passo tentando chegar o mais rápido possível em casa, apenas para sentir, depois de uns dez minutos, um, dois, três, infinitos pingos que caíam sobre mim. Ensopada seria um eufemismo desgraçado para definir meu estado. Ao que tudo indicava o universo, simplesmente, decidiu de uma hora para outra quebrar o nosso pacto sobre nunca me deixar nessa situação.

Parei por um momento, respirei fundo e senti o ar gélido percorrer meu corpo, me deixando lentamente mais leve — ao contrário da corrida que somente me deixou cansada. — Olhei a minha volta percebendo que estava no parque, a uns vinte minutos de casa. Mas após parar minhas pernas se recusaram a dar seguimento na caminhada. E tampouco sentia urgência em chegar em casa, afinal, já estava toda molhada. Quando boa parte da energia se dissipou, comecei a apreciar a água que escorria por minha pele e me sentei pelo chão, aproveitando o momento.

Nem mesmo sei quanto tempo se passou. Porém sabia que, pela primeira vez, havia parado de pensar. Nem mesmo uma palavra. Somente me dei conta deste fato quando o ouvi me chamar, num tom que deixava claro que não era a primeira tentativa.

— Clarice? — Permaneci quieta, no entanto, consciente de todos os seus movimentos. Logo pude vê-lo a minha frente, fitando-me com uma expressão preocupada. Com aqueles olhos que um dia tiveram a missão de virar o meu mundo de cabeça para baixo. Os únicos que um dia pude compreender. — Clarice, está me ouvindo? — Assenti com um aceno, sem forças para proferir mais palavras. — O que você está fazendo aqui? Já reparou que o mundo está caindo?! — Seu tom de voz se ergueu, e involuntariamente torci a boca. Meu silêncio prolongou-se,  enquanto o observava notar sua alteração, e por fim, suspirar.

— Por que está aqui? — As palavras saíram frágeis. Arranhadas. Como se estivessem a ponto de quebrar ao mais leve toque. — Não estou no clima para começar outra discussão. Nem um pouco.

— Não estou aqui para discutir. — Arqueei a sobrancelha com descrença. — Eu só... Eu precisava te ver. Não posso deixar que esse seja o nosso fim. Nós podemos tentar mais uma vez. Eu sei que podemos fazer dar certo... Eu te amo e preciso que esteja presente todos os dias da minha vida.

— Eu também te amo... — Confessei. — Mas isso está me sufocando cada vez mais. E, por favor, não venha me dizer que podemos resolver porque não podemos. Já perdi as contas de quantas vezes estivemos quase nesse mesmo ponto, e você sempre me convencia do contrário. Mas você também sabe que há muito tempo não funcionamos mais. E se eu me render aqui, sei que teremos esta mesma conversa daqui a um mês;. E os gritos serão maiores do que os de uma hora atrás. No final tudo o que teremos conseguido é odiar um ao outro. Então, não. Não há volta. Estou escolhendo a minha sanidade, enquanto ainda podemos colocar um ponto final que não seja seguido de rancor.

Memórias [CONTO]Onde as histórias ganham vida. Descobre agora