O Flagelo dos Pés Virados

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Ele jamais descobriria a verdade: essa ficou restrita à mulher que o pariu, a qual nunca poderia chamar de mãe.

Motivos a ela não faltavam, se é que existe alguma forma de advogar sua causa. Uma vida de abusos e agressões, em que cada entardecer se apresentava como um anúncio do que estava por vir: os grandes construtores de sua tribo de pachamamas regressavam de um dia de árdua labuta à espera de certeiros banquetes seguidos de deflorações das mulheres que os haviam preparado. Ela sabia que era a escolha preferida dos mais indecentes, que se compraziam em sua deficiência e a tratavam como a um animal sem humanidade. Ter nascido com os dois pés virados para trás era a razão de seus maiores sofrimentos.

A cada noite, recebia uma nova coleção de hematomas que pulsavam e lhe roubavam o sono, o que afinal era bom: abandonar a vigília parecia conivência para algum crime maior, se é que haveria algo pior que a defluência quase diária de abusos e violações de suas intimidades.

Não havia fuga, pensava ela: para onde poderia ir?

Não demorou a chegar o dia em que o ventre começou a crescer. Foi quando soube que não poderia continuar. Na mesma noite em que um grande grupo de construtores retornaria de um projeto na tribo dos mateers e certamente estariam sob efeito das misteriosas substâncias que os deixavam fora de suas plenas capacidades, observou que os sangramentos haviam cessado. Recolhendo o que podia, a pachamama partiu para a mata e ali se escondeu até o parto.

Tantas luas depois, vivendo de ervas e frutos ao fundo de uma pequena gruta que ela mesma construiu, deu à luz a criança que jurou proteger. Via nela a possibilidade de renovar a própria vida; via no ser que crescia em si uma esperança que jamais pôde ter. No entanto, ele não foi querido ao nascer. Talvez pela dor que causou à genitora, talvez pelos incomuns espessos cabelos cor de fogo, ou talvez porque carregasse sua própria maldição: os dois pés também eram virados para trás.

A mãe sentiu repulsa. Sentiu-se incapaz. Incapaz de ser plena no que se tentasse realizar. Falida. A gestação, ao contrário do que imaginara, não se provou uma salvação, mas sim a declaração final de que a vida não valia a pena.

Abandonando a criança disforme sobre uma cama de folhas de palmeira no chão da mata e alçando preces a Iabeshah para que cuidasse de seu rebento, ela partiu para o lago e nele adentrou até não sentir mais os pés tocarem o fundo. Ali perto, o Curupira chorou quando sua única conexão com o mundo deu o último respiro.

O lamento atraiu animais e espíritos da mata, que dele tomaram conta dali em diante. Por sua vez, ele devolveu o amor que recebera dedicando a vida a cuidar daqueles que o tomaram por família. Sua devoção à floresta o tornou digno de receber de Iabeshah domínio excepcional sobre a terra, na qual deixava suas pegadas inversas que confundiam caçadores e outros malfeitores.

No entanto, ele guardava um segredo. Uma parte de seu coração que jamais se recuperaria mantinha viva a dor que ele não era capaz de dominar. Por que?, ele se perguntava. Havia sido rejeitado por quem mais deveria amá-lo. Essa era a causa de sua maior dor, que mesmo o amor que recebia dos seres que com ele habitavam não era capaz de aplacar. A rejeição ardia como uma ferida incapaz de cicatrizar.

Curupira dividia em seu coração a dor do abandono e a curiosidade mórbida de retornar às raízes e descobrir sua verdadeira história. Haveria algum culpado? Haveria de quem se vingar?

Enquanto luz e trevas conviviam em seu peito lutando por extravasar-se, passava seus dias mascarando dos demais a dor que já se tornava insuportável.

Para ele, a felicidade era um tesouro que jamais encontraria.

A Outra Perna do SaciOnde as histórias ganham vida. Descobre agora