M.A.P.A.

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EM frente ao espelho da casa de banho, arregalo os dentes e com o indicador puxo as pálpebras para baixo. Fiapos vermelhos irrigam-me as escleras. Não há indícios de tromboses até agora. Pego na escova de dentes e movo-a para a esquerda e para a direita, e depois para cima e para baixo enquanto tento segui-la com os olhos. Toco na ponta do nariz com os indicadores e depois coloco a mão sobre o coração. Nada de sopros, nem palpitações nem taquicardias. Por enquanto. O dia ainda é uma criança. Antes de me levantar, senti apenas um pequeno polvo a apertar-me um pouquinho a mitral, nada de muito preocupante. Talvez seja ansiedade – prendo bem o M.A.P.A. à cintura, de vinte em vinte minutos, a espécie de walkman apita para me medir as tensões. A braçadeira insufla-se automaticamente esganando-me o bíceps esquerdo. Tudo isto para prevenir o conhecido "síndrome de bata branca". Não posso tomar banho durante as 24h que iria usar o aparelhómetro. Ainda bem que está frio. Visto um pulôver à marinheiro para encobri o M.A.P.A. à cintura e um kispo vermelho (na verdade é um Umbro) que me faz lembrar sempre o Bobby Robson. "Mas é vermelho, o Bobby Robson era...". Pois é. Não perguntem, não sei explicar. Três sacos de lixo pretos acumulam-se na marquise. Tenho de os despejar sem falta logo à noite. Vivo num apartamento no 7º andar de um prédio com quase trinta anos. Saio todos os duas por volta das 7:50 para ir trabalhar. Sou assistente administrativo num hospital e raros são os dias em que suporto o meu trabalho.

Para chegar ao elevador tenho de passar pelo 7º Traseiras. A casa de banho do meu vizinho faz paredes-meias com o meu quarto. O meu vizinho toma duche todas as manhãs. Cada duche do meu vizinho demora seguramente três quartos de hora. Deveria haver uma lei. Enquanto toma banho, gosta de dar violentas fungadelas para fora que lhe devem revolver as fossas nasais, imagino sempre um bisonte a tomar duche num polibã. Fora isto raramente o ouço. Tal como eu também mora sozinho.

No momento em que limpo os sapatos no capacho do meu vizinho (já é hábito, faço-o sempre quando estou a chegar e a sair de casa), ele escancara a porta. O olhar dele passou de sonolento a indecifrável. É um tipo jovem, de uma magreza agoniante (de bisonte não tem nada), tem ar de bancário estagiário. Esperamos os dois pelo elevador. Ele pressiona o botão com o dedo do meio. Uma mensagem subliminar. A unha é uma amostra de unha, está roída quase até à meia-lua. Nervos e falta de cálcio. Fá-lo várias vezes e diz "este elevador". Não temos nada a dizer um ao outro. Eu já esgotei os meus créditos de iniciativas, agora seria a vez dele. Desisto de esperar e começo a descer as escadas. Nunca me aventurei a descer as escadas do meu prédio e já moro aqui há um ano e quatro meses.

Ao chegar ao patamar do 6º andar, ouço gritos e ameaças abafados que parecem vir do piso inferior, do 5º. Tento mais uma vez chamar pelo elevador. Nada, o botão com a seta continua amarelo.

No patamar mal iluminado do 6º, consigo ver duas camas e uma maca entre as portas dos apartamentos. Há um ligeiro cheiro a éter no ar. Aproximo-me. Uma réstia de luz caía sobre o corpo de um dos velhotes que estava deitado na maca. Não parava de dizer "Então, então". Tem a cara chupada e a barba por fazer, a testa sulcada cheia de manchas. É pestanudo como o Cunhal. Um saco de ossos, se calhar é o pai do meu vizinho do lado. Arranca com violência o tubo do soro e repete "Então, então". O homem ainda não decidiu se deveria morrer ou não. O meu M.A.P.A. à cintura fez beep, mais uma medição a caminho. Tento abafar o beep com o meu kispo à Bobby Robson. Não sei porque o faço, estes velhotes espalhados pelo corredor têm ar de estarem pior do que eu. Desvio o olhar para não influenciar os valores das minhas tensões. Sinto o braço a ser esganado pela braçadeira. Tinha ouvido rumores que no 6º piso funcionava um lar clandestino, mas sempre achei que eram boatos de vizinhas que não têm mais nada que fazer. Ou seria uma clínica? É verdade que às vezes ouço guinchos e gemidos a altas horas da madrugada, pensava eu que era o meu vizinho de cima que recorre regularmente aos serviços de profissionais do prazer. Sinto-me um pouco deprimido e enfio os dedos nas bolsinhas das moedas dos bolsos à procura dos victan. Ou lexotan. Nada, só pastilhas de nicotina no bolso do kispo. Mando duas abaixo e atiro duas cápsulas para cima do velhote moribundo. Ele começa a chupar aquilo, os olhos ganham vida e depois deita-se com um sorriso nos lábios como tivesse acabado de fazer amor. Nova tentativa para chamar o elevador. Avariou-se de certeza. Alguns condóminos não pagam o condomínio e a manutenção do elevador é a primeira despesa a ser sacrificada.

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⏰ Última atualização: Mar 23, 2016 ⏰

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