Realização pessoal

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Abro minha caixa de e-mails e levo um susto. Uma das mensagens traz gravado, por detrás das letras impressas, o retrato acabado da infelicidade. Amiga de velhos tempos, esta pessoa reclama do tratamento que recebeu numa festa, justo ela, que está com um sério problema de saúde recém-descoberto.

Alarme número um: detecto a autopiedade escorrendo entre as sílabas de cada palavra. Como se os outros tivessem a obrigação de adivinhar o que se passa com a saúde alheia! Aliás, nem ela mesma teve o diagnóstico conclusivo, tudo poderá não passar de algo sem gravidade, mas a tentação de atrair pena sobre si mostra-se maior do que o bom senso.

Depois, ela destila uma cantilena de ressentimentos, mágoas, injustiças. O papel de vítima é envergado com destreza, como se fosse uma atriz exibindo o talento inato para o drama.

Por fim, após se declarar uma fracassada em cada compartimento da sua existência, do malogro na carreira profissional ao casamento mal sucedido, arremata com duas frases que prosseguiram ecoando na minha cabeça por dias a fio: "Você não sabe o quanto é doloroso, nesta altura da vida, constatar que fracassamos em tudo", disse, sem meios-termos. "E olha que nem sou tão ambiciosa assim...", concluía.

Superado o choque inicial, a vontade de largar tudo e oferecer a ela o ombro amigo, enquanto inconscientemente me culpava por minhas modestas, mas preciosas conquistas, comecei a refletir sobre o assunto.

Em primeiro lugar, não entendia como uma mulher madura, que teve uma educação das melhores, cresceu numa família razoavelmente estruturada, fez duas excelentes faculdades, fala quatro línguas com fluência e ganha o suficiente para se sustentar, ainda reclama que fracassou!

Lembro-me dela adolescente, o modelo ideal, a garota mais bonita, descolada e brilhante, com o namorado que quisesse a seus pés. Inteligente, rodeada de amigos e admirada por muitos que nela se espelhavam. Como um projeto tão perfeito pôde dar errado?

Justo ela, que tinha diante de si todas as portas abertas, perspectivas e horizontes com que a maioria, incluindo eu mesma, sequer podia se dar ao luxo de sonhar?

Leio e releio o e-mail recebido, na vã tentativa de compreender e explicar aquela autoestima diminuta em alguém que um dia teve o mundo a seu bel prazer. Refletindo e pensando sem parar, vou da pergunta onde ela errou? para esta outra: onde ela está errando? Porque, em se tratando de alguém no auge da maturidade, com tanta bagagem acumulada, não podemos falar no pretérito perfeito.

Ela não é, hoje, apenas o resultado de alguns desvios de rota na juventude. E, como todos nós, ainda tem, se quiser, o mundo em suas mãos. Tudo é uma questão de coragem, coragem de se transformar. Saber despir-se dos sentimentos e das pessoas que nos prejudicam, puxam para baixo, e olhar adiante com o frescor de quem está começando.

Renovar-se a cada manhã, procurando o lado bom das coisas e confiando no próprio poder de se superar, de crescer, de se tornar alguém melhor e mais aberto. Enfim, colocar arte nos diversos setores da vida, do trabalho à relação a dois, das amizades ao trato com os filhos.

Porque a felicidade não nos é dada de bandeja, por nascimento ou alguma graça divina. Há mais de dois mil e quatrocentos anos Sócrates já questionava, em Atenas, o significado da palavra. Coube ao filósofo grego o mérito de dar, a ela, sua conceituação moderna, mostrando que a felicidade não dependia dos desígnios dos deuses como até então se acreditava.

Não era decretada como um destino do qual não se pode escapar, e sim perseguida, construída pelos mortais comuns. Foi Sócrates quem mostrou que ela é nossa responsabilidade, nosso direito.

É uma conquista que se faz a cada minuto, e cabe a nós lutar por isso, ir buscá-la onde quer que esteja. É fácil jogar a culpa nos outros, os pais que não corresponderam ao nosso modelo, os filhos que roubam nosso Tempo, o marido castrador que nos tolhe, o chefe que não nos valoriza como deveria.

Enfim, um complô universal de forças poderosas conspirando para que não possamos nos realizar como seres humanos em nossa plenitude, como se não fôssemos responsáveis pelas nossas escolhas. Só que, em lugar de lamentar, reclamar da indiferença das outras pessoas, por que ela não comentou o que de bom lhe aconteceu?

Por que não falou das pessoas interessantes que encontrou, das coisas bonitas que viu, das palavras amigas e carinhosas que recebeu? Pois se você funciona como um buraco negro que suga tudo à sua volta, não restará luminosidade para clarear o seu trajeto. E, por autodefesa, mesmo aqueles que têm carinho por você acabarão afastando-se.

A felicidade, portanto, é forjada passo a passo e, como uma flor muito frágil num jardim, requer cuidado e atenção. Ela não é uma graça, nem vem com certificado de garantia. Trata-se de um estado de espírito, de uma postura diante da vida. Isso explica por que tantas pessoas ricas que receberam tudo de bandeja são infelizes, enquanto outras, pobres e com grandes limitações materiais, declaram-se felizes e otimistas. Interessante verificar que nem todos pensam assim.

Ele morreu por excesso de infelicidade, disse-me certa vez alguém a respeito de um amigo comum que faleceu ainda jovem, na plenitude dos seus quarenta anos. Martelei a frase na cabeça durante horas. Tentava a todo custo encontrar o eventual culpado por aquele transbordamento de infelicidade. Seria a empresa onde ele trabalhava? Uma frustração no seu projeto de vida? A esposa, que não o compreendia?

Ao final de muito refletir, em vez de respostas, acabei com outra pergunta diante de mim. Como um homem atraente, querido pelos amigos, com uma bela carreira, filhos bonitos, e ele mesmo até então saudável, podia dar-se ao luxo de beber do cálice amargo da infelicidade?

Se tudo aquilo que aparentemente deveria ser motivo de alegria estava prejudicando-o, que direito tinha ele de permanecer quieto, como se amarras invisíveis o atassem a seu triste destino?

Por que aceitar passivo o que o atormentava, em lugar de ir à luta e batalhar pelo direito de ser feliz? Talentoso como era, emprego novo arrumaria. Frustrações todo mundo tem, e muda de rumo ou de ramo. Gênios incompatíveis num casamento esgotado é algo mais corriqueiro do que se imagina. Para resolvê-los, servem os psicanalistas, se o caso é tentar um rearranjo. Na hipótese de uma separação, sobram excelentes advogados na praça.

Nos dois exemplos acima, fico com a ligeira impressão de que estas pessoas nunca conseguiram sair do ovo imaginário dentro do qual se trancaram. Por receio de enfrentar transformações e os efeitos delas, optam pelo certo sem apostar no duvidoso, escolhem a segurança ao risco inerente a qualquer mudança.

Mesmo dispondo de condições objetivas que facilitam uma transição menos dolorosa, como uma situação econômica relativamente equilibrada, saúde e apoio de amizades confiáveis e fiéis, deixam-se ficar, inertes, suportando (mal) as consequências não raro nefastas do seu comodismo.

Mesmo sabendo ser estreito demais para mim, vou ficando neste mundinho da mediocridade, a esperança de um olhar piedoso compensa minha falta de horizontes. Aliás, pessoas negativas não enxergam soluções. Em vez disso, aumentam os problemas, adotado uma postura de queixas e lamentações. São mestres em lamentação, em pessimismo crônico.

Lembremos que a rejeição de si próprio, a ausência de autoestima, faz com que sejamos algozes de nós mesmos. Precisamos nos tornarmos o núcleo de uma vida saudável. Em geral, os que têm dificuldades em em se aceitar são invejosos, ciumentos, imitadores, competitivos e destruidores. Portanto, aceitar-se, aceitar ser aceito, receber bem as críticas, é pura sabedoria, bom senso e terapia. Um aprendizado a ser feito ao longo da vida.


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