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Ação de Graças, 1996.

               Era o terceiro Ação de Graças sem a mamãe. Mais um Ação de Graças com a comida recém preparada pela empregada. Mesmo com a mesa farta de comida, Ross comia o mais rápido que podia, já que Ritchie prometeu em deixa-lo ver o jogo de futebol se ele comesse tudo. Claro, Ritchie adorava as suas técnicas de subornação. Era imperceptível para alguns, mas para mim, era bastante óbvio.

               James brincava com seu novo brinquedo no tapete junto com Charlie, que babava tanto enquanto seus novos dentes nasciam. Por mais que eu só tivesse contato com Charlie quando Ritchie não estava em casa, eu o cuidava e brincava com ele. Era uma ligação tão forte entre eu e ele que nunca tive com Ross e James. Era uma pena, já que éramos garotos, novos e indefesos. Eles nunca defenderam um tapa sequer que Ritchie me dava. Eles ficavam calados. Já Charlie, por mais que eu detestasse que ele visse a cena, ele chorava e eu me sentia tão culpado que tentava não fazer nenhum erro sequer para ver meu irmão caçula chorar novamente.

               Enquanto todos mantinham sua tarefa, eu mantinha a minha. Comendo. Eu precisava de forças até a próxima surra que viria e já sabia que qualquer coisa que aparenta errado para Ritchie, eu poderia ficar dias ou semanas sem comer. Eu não comia há cinquenta e seis horas. E mesmo assim ele disse pra empregada colocar pouco, porque ele e os filhos morriam de fome.

                 Ele era um anarquista egoísta e egocêntrico. E eu só nutria um único sentimento por ele: ódio. Não dava pra discutir, não dava pra argumentar. Era do jeito dele ou do jeito mais prático: abaixar a cabeça e conviver com aquilo.

                 Durante o jantar, Ross terminou a comida, ligou a televisão e gritou ao ver que seu time estava na frente. Ele nunca permitiu televisão para mim, eu só assistia quando ele estava fora. Então não podia acompanhar os desenhos, os programas e nem escutar músicas. Eu me esforçava muito para dar certo, dele gostar de mim. Porém ele nunca deixou isso acontecer. Sempre me colocou pra baixo, literalmente.

               Ritchie me observou o jantar inteiro. Eu não olhava nos seus olhos, apenas para o meu prato e observei lentamente quando a empregada chegou com mais um prato feito e de quando ele colocou a mão por baixo de sua saia minúscula. A mulher de chamava Judith, eu lembro disso, ele a chamou assim uma vez. Era Judith, mas ela adorava ser chamada de Judie. Era nojento vê-lo com outra bem debaixo de nossos narizes, onde sua própria mulher faleceu, mas ele não se importava com isso de maneira alguma. Ross e James deviam nem perceber ou simplesmente ignoram por ter tanto medo do pai.

               Quase finalizando o meu prato, peguei a faca para cortar o meu pedaço de peru. Mas a faca passou tão rápido e estridente pelo prato caro da Grécia que mamãe ganhou de bodas, que foi o que bastou para ele se levantar brutamente da mesa.

— Garoto idiota, não sabe nem comer quieto! — esbravejou ele.

— Eu não... eu não tive intenção, foi um acidente — gaguejei.

Ele me esbofeteia na cara, fazendo-me cair no tapete.

— Sua mãe ganhou de bodas, são caros. Você sabia disso?

— N-Não, senhor.

               Senhor.

               Ele me obrigou a chama-lo apenas de senhor. Nunca de pai.

               Ele deu um passo na frente e ergui a mão para tentar me defender. Porém ele apenas bateu na mão e me arrastou até o lugar onde eu costumava dormir. Tinha a cama usada de Ross, velas acesas porque ele não me permitia gastar energia. Era um quarto um pouco grande, mas não tinha ventilação e a única janela foi trancada para eu nunca fugir.

               Ritchie me jogou lá dentro e me deu outra esbofeteada na cara.

— Sua mãe teria vergonha de você — cuspiu ele. — Dois dias sem comida.

— Mas eu... eu nem terminei a minha...

— Tem sorte de ter comido, garoto.

               Ele tinha o rosto fechado, sempre fechado para mim. Apenas sorria para os outros. Suspirando de impaciência, ele saiu do quarto.

            Dei graças a Deus que só levei tapas e não uma surra. Mas eu sabia que era questão de tempo até acontecer.




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